Crônicas e Controvérsias


UMA POLÍTICA DE LÍNGUA
PARA O CIBERESPAÇO: SOBRE OS LIMITES DA “IGUALDADE”

Claudia Freitas Reis*

 

Introdução
O ciberespaço constitui-se, na contemporaneidade, enquanto um lugar que funciona na determinação dos sujeitos, em seus gestos e modos de pensar a própria realidade não virtual. Enquanto um espaço habitado e funcionando como uma espécie de continuum do mundo real, instaura uma necessidade de normatização, na medida em que tem sido interpretado também como um espaço democrático, como uma extensão do regime político que rege grande parte do planeta. Com a globalização e a possibilidade de uma comunicação entre todos, na qual as distâncias são diluídas e os espaços destituídos de fronteiras, a questão das línguas e de sua circulação começa a ganhar espaço em prol de uma democratização e igualdade de acesso e uso destas. Neste trabalho, realizamos uma análise de parte de dois documentos divulgados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, UNESCO, nos quais são propostos caminhos que cumpram esta nova exigência mundial de regulação, na Internet, das línguas do mundo circulantes no ciberespaço. Nossos questionamentos, ao analisarmos tais documentos, estão relacionados à forma como a idéia de língua está posta e no próprio movimento que considera uma pluralidade que acaba, ao mesmo tempo em que inclui, excluindo. Tomaremos para esta questão o conceito de político proposto por Guimarães (2002).
Os documentos que analisamos são 1. O texto introdutório do documento ¿Cómo garantizar la presencia de uma lengua en el ciberespaço? , redigido por Marcel Diki-Kidiri, em 2007 na França, como parte do Estudo sobre o Multilingüismo no Ciberespaço, realizado pela União Latina – DTIL. O segundo é a “Recomendación sobre la promoción y el uso del plurilingüismo y el acceso universal al ciberespacio” documento adotado pela Unesco em 2003 na 32ª seção, sendo  foco de nossas análise o texto que versa sobre a “Elaboração de Conteúdo e Sistemas Plurilíngües”.

Os sentidos de uma política de línguas
Ao pensar a idéia de uma política lingüística, estamos necessariamente lidando com a questão da relação entre as línguas e com esta busca por uma regulamentação da circulação e do uso destas. Segundo Guimarães:

A questão das relações entre línguas é antiga. Ou seja, desde a Antiguidade sabe-se que as línguas funcionam umas em relação às outras e que isso faz parte de seu funcionamento histórico e assim de seu processo de mudança. (Guimarães, 2006, p.11)

De acordo com Rodriguez, em um texto no qual são realizadas análises de documentos sobre políticas lingüísticas, haveria pontos na textualidade dos documentos que permitiriam localizar uma certa visão etnocultural, a partir de um consenso etnocultural, que se aproximaria às formulações românticas e fascistas, como a defesa da língua pautada por uma defesa da nacionalidade. Assim, nas análises destes documentos, estariam presentes sentidos que trazem a questão de um culto ao passado e aos ancestrais e, com isso, a idéia de um patrimônio cultural, a idéia de igualdade; outro ponto seria a própria contradição constitutiva de um ideal igualitário, o que desconsidera o funcionamento político da relação entre as línguas. De acordo com Rodriguez:

As sociedades são múltiplas, contraditórias e estão em permanente movimento, motivo pelo qual as tentativas de fixar certos elementos culturais como fazendo parte das mesmas, trará necessariamente a exclusão de todos os demais: no que diz respeito às línguas e às culturas, quanto mais se legisla e se define, mais se exclui. (Rodriguez, 2008, p.25)

Outra questão apontada pela autora é o próprio movimento contraditório na proposta do direito às minorias, às línguas minoritárias, já que “continuam sendo sempre critérios de força e de número que tais políticas pretendem criticar, mas que acabam multiplicando pela sua extensão às outras línguas” (Rodriguez, 2008, p. 25).  Estes sentidos funcionam no apagamento do litígio, do dissenso, constitutivos das organizações sociais. Assim, no que concerne à idéia de homogeneidade:

  1. O que deve ser levado em conta, porém, é que essa unidade comum não é natural mas sim histórica, produzida num trabalho político de homogeneização social sempre tenso e contraditório. É esse um pressuposto fundamental para definir os sentidos de cultura hoje e para situar a questão crucial da língua nacional: é na injunção ao cumprimento da lei (já que seu desconhecimento, na ideologia jurídica atual, não exime os cidadãos de tal responsabilidade) que encontramos uma das explicações dessa relevância. (Rodriguez, 2004, p.08)

 

Propomos um olhar para nosso corpus, através de um diálogo com as questões apontadas pela autora em seu estudo, tentando compreender de que forma estes sentidos são (re)significados nos documentos que versam sobre as políticas lingüísticas no ciberespaço.

Sobre o dispositivo teórico adotado
Considerando que não há leitura sem que se coloque uma determinada posição teórica, é importante dizer que tomaremos como base para nossas análises os conceitos propostos pela Análise do Discurso – AD – em sua vertente francesa. A AD se constitui em um espaço teórico onde se tocam as ciências sociais e a lingüística, no entanto, isso não se dá em uma relação de soma, mas em uma relação que propõe questionamentos entre estas ciências. É, então, no entremeio entre a psicanálise, o marxismo e a lingüística que a AD propõe suas discussões e sua forma de pensar os sentidos.  Segundo esta teoria os sentidos se dão em relação com a história a partir de um caráter materialista, ou seja, não se toma o sujeito enquanto fonte daquilo que diz, enquanto responsável, dono de suas vontades, mas enquanto determinado pelas condições materiais de sua existência. A língua é apresentada enquanto um trabalho do simbólico. De acordo com Orlandi:

Na análise de discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e de sua história. (Orlandi, 2003, p.15)

Assim, no estudo da materialidade lingüística, consideraremos sempre esta relação determinante entre língua, história, ideologia e discurso, sendo que tal relação se dá na medida em que a materialidade da ideologia é o discurso e a materialidade do discurso a língua. Toma-se o texto enquanto algo opaco, não transparente, não evidente. Diante da materialidade simbólica, não encontraremos a evidência de sentidos, mas, justamente, a incompletude, o não fechamento das possibilidades de significar.  Essa leitura discursiva acaba por considerar o que é dito em um discurso e o que é dito em outro, o que é dito de uma maneira e o que é dito de outra maneira, procurando entender e escutar o não-dito, exatamente na materialidade do que foi dito, considerando essa ausência como algo significativo; e tudo isto dentro de determinada formação discursiva. A memória discursiva pauta-se na possibilidade dos dizeres que se renovam e se atualizam no momento de sua enunciação. Assim, é a partir destas considerações sobre a própria forma dos sujeitos se significarem que propomos nosso olhar para o corpus em questão.

Perceber que não podemos não estar sujeitos à linguagem, a seus equívocos, sua opacidade; saber que não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos. A entrada no simbólico é irremediável e permanente: estamos comprometidos com os sentidos e o político. Não temos como não interpretar. Isso, que é a contribuição da AD, nos coloca em estado de reflexão e, sem cairmos na ilusão de sermos conscientes de tudo, permite-nos, ao menos sermos capazes de uma relação menos ingênua com a linguagem. (Orlandi, 2003, p.09)

O sujeito, na produção de um discurso, promove uma relação deste discurso em formulação com o interdiscurso ou memória discursiva, ou seja, com todos os dizeres que já foram, de fato, ditos. O interdiscurso é aqui entendido como o cruzamento de vários discursos que significarão através de sua materialização no enunciado. A maneira como a memória funciona determina as condições de produção, que “compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação”.

A memória, por sua vez, tem suas características, quando pensada em relação ao discurso. E, nessa perspectiva, ela é tratada como interdiscurso. Este é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construido, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada. (Orlandi, 2003, p.31)

Desta forma, nossa leitura e análise dos textos sobre políticas lingüísticas pressupõem este entendimento sobre os sentidos, sobre a noção de texto, sobre a memória; os sentidos sempre determinados em uma relação histórico-ideológica com sua materialidade simbólica.
Apresentaremos também dois conceitos propostos por Guimarães (2002) em sua Semântica do Acontecimento, que também se coloca em uma posição materialista e histórica, dialogando com os preceitos da Análise do Discurso aqui expostos. Mobilizaremos o conceito de espaço de enunciação e o de político, os quais trataremos com mais cuidado no decorrer da análise.

O ciberespaço
Hoje, com a Internet, temos um novo espaço de circulação de sentidos, de línguas e falantes. Para tratar deste ciberespaço, trago algumas questões abordadas por Dias (2004), em sua tese de doutorado intitulada “A discursividade da rede (de sentidos): a sala de bate-papo HIV”. Durante a história da humanidade, muitas foram as formas de tratar o espaço. Em seu texto, a autora traça um extenso panorama sobre as idéias que o homem, ao longo da história, formulou sobre o espaço. Desta forma, passa pela idéia de um espaço material e outro imaterial na Idade Média; a sobreposição do segundo sobre o outro no Renascimento, os dualismos, os vazios, o infinito e o finito, o expandido e o dinâmico, para então tratar do ciberespaço.
Segundo a autora, da concepção do espaço material e imaterial da Idade Média, passando pela sobreposição do físico ao imaterial:

É interessante observar que à medida que o sujeito descobria o mundo e cartografava suas possibilidades, ele cartografava também um modo de ser e habitar esse espaço. O que quero dizer é que a descoberta do espaço configura o sujeito em sua maneira de habitá-lo, uma vez que a cartografia é uma perspectiva (político e ideológica) sobre o mundo, sobre suas relações, portanto é a representação (gráfica), o simulacro do conhecimento que o sujeito produz sobre o mundo. (Dias, 2004, p.30)

Hoje temos este novo espaço, virtual, com uma temporalidade própria, e que está sempre em relação com o real, já que aqueles que o “habitam” na virtualidade, são também habitantes do espaço “real”. No entanto, tomando a idéia de uma cartografia do espaço, poderíamos pensar que o virtual existe, mas não é localizável. Segundo Dias, “há nisso fundamentalmente, um deslocamento de sentido. Experimentamos o espaço de um outro modo, de um modo virtual.” (Dias, 2004, p.31)
Penso que considerar o fato de que o virtual é construído a partir de um real não-virtual é importante para pensar as discursividades neste ciberespaço. E desta forma “com o ciberespaço o mundo desdobra-se em seu funcionamento (discursivo) e, assim, novas relações de sentidos são tecidas.” (Dias, 2004, p.12)
É sobre este espaço não cartografável que versam as políticas lingüísticas aqui estudadas. Nesta forma, a escrita é onde se realiza a ilusão da completude e de pertencimento destas línguas classificada como “pouco dotadas”, como veremos no decorrer das análises. Segundo Dias, e escritura no ciberespaço

(...) desloca o sistema lingüístico normativo, que passa a ser regulado por outros imaginários, reestruturando a língua em função de uma necessidade do espaço tempo tecnológicos. Cria-se, em função dessa prática da escrita nas salas de bate-papo, uma normatividade lingüístico-tecnológica, configurada pela temporalidade como uma dimensão do espaço, e pelo espaço como uma dimensão do discurso. (Dias, 2004, p.24)

É um espaço com certas especificidades, que clamam por uma nova revolução tecnológica, segundo a forma como isso é entendido por Auroux, ou seja, é necessário o desenvolvimento de tecnologias e instrumentos que possibilitem o acesso a este espaço. Diante disso, desta falta de instrumentação, vê-se a questão das línguas minoritárias que já sem instrumentos no espaço off-line, não tem acesso a este espaço online.
Assim, a regulação deste novo espaço, de forma que os direitos democráticos sejam assegurados, faz circular os sentidos de uma pluralidade que o invade, e que funciona de forma excludente. Ou seja, apesar de um acesso livre ao ciberespaço, aqueles que não possuem uma instrumentação e instrução adequadas, estão, necessariamente, excluídos. Assim, as políticas lingüísticas sobre o ciberespaço versam sobre esta necessidade de desenvolvimento de gramáticas, dicionários, pedagogias que permitam às línguas minoritárias ocupar a Internet. É, no entanto, na contradição que isso vai funcionar, na medida em que a proposta de uma política lingüística passa por uma normatização deste espaço a qual necessariamente produz exclusão.

Proposta de acesso à internet: análise dos documentos
O documento de “recomendação sobre a promoção e o uso do plurilingüismo e o acesso universal ao ciberespaço”, que guia muitos dos textos publicados pela UNESCO sobre políticas lingüísticas no ciberespaço, propõe ações para implementar o acesso de todas as línguas ao ciberespaço. Levando em conta a “Declaração Universal dos Diretos Humanos”, bem como o papel da UNESCO na difusión de la cultura y la educación de la humanidad para la justicia, la libertad y la paz, propõe uma série de medidas para que os Estados membros  possam garantir este direito constitucional de acesso à informação e a realização de uma difusão cultural. Para este trabalho, selecionamos uma das partes que compõe este documento, intitulada “Elaboración de contenidos y sistemas Plurilingues”, sobre a qual direcionaremos nossos olhares.
A primeira recomendação versa sobre a necessidade de desenvolvimento de recursos que viabilizem acesso ao ciberespaço para garantizar que todas las culturas puedan expresarse y acceder al ciberespacio en todas las lenguas, comprendidas las indígenas. Vejam que o próprio enunciado já possui um caráter excludente, na medida em que ao enunciar língua, não se incluem as indígenas, sendo, desta forma, necessária uma reiteração, uma reafirmação, que explicite o pertencimento das línguas indígenas ao grupo “todas as línguas”. Este acesso de todas as línguas deve ser ligado a uma produção de contenidos de origen local y indígena, ou seja, não estaria previsto somente o acesso da língua, mas uma elaboração de conteúdos que remetessem a essa língua, estabelecendo, portanto, a relação línguas-cultura.
Na terceira recomendação há um movimento de hierarquização das línguas que devem ser reguladas e instrumentadas pelos países em desenvolvimento, ou seja, estas recomendações partem dos países ditos desenvolvidos em direção aos países em desenvolvimento. Isso implica, necessariamente, em estabelecer que as considerações sobre língua e cultura, o que pode ou não ser incluído dentro da forma que se tomam estas duas idéias, será indicada por estes países. Isso é reiterado diversas vezes quando, explicitamente, o documento delega estas tarefas a Los Estados Miembros, las organizaciones internacionales y el sector de las tecnologías de la información. São ainda estes órgãos os responsáveis por fiscalizar o seguimento das normas propostas, das recomendações técnicas e as buenas prácticas que existan en materia de plurilingüismo y de recursos y aplicaciones plurilíngües.
No texto de introdução do documento ¿Cómo garantizar la presencia de una lengua en el ciberespacio?, o acesso à Internet por parte de todas a línguas é factor fundamental de la democracia a nivel mundial, mas que, no entanto, carece de uma instrumentação adequada das línguas mais carentes, para que estas possam ter os recursos necessários a esta prática. Assim o texto problematiza a questão posta inicialmente:

Como hacer para que una lengua poco dotada de recursos lingüísticos y/o informáticos, e incluso de recursos humanos, encuentre un lugar en el ciberespacio y esté presente de manera activa?

O documento propõe então o caminho que traz as respostas para esta indagação, de maneira que toda lengua que tenga una regular cantidad de recursos y que esté pobremente representada en el ciberespacio puede encontrar respuestas en este estudio. Esta resposta está diretamente pensada para as línguas sem qualquer instrumentação, desprovida de um sistema ortográfico que permita que ela possa ser escrita.
Sobre o que é uma língua poco dotada, encontramos a seguinte formulação:

Es una lengua que no dispone, total o parcialmente, de los recursos esenciales de los que si disponen, por lo general, las grandes lenguas del mundo, como una ortografía estable en un sistema de escritura dado, obras de referencia (libros de gramática, diccionarios, obras literarias), obras de difusión masiva (prensa escrita y audiovisual, películas, canciones y música), obras técnicas y de aprendizaje (publicaciones técnicas y científicas, obras didácticas), diversos soportes de comunicación diaria (afiches, publicidad, correos, noticias, manuales, etc.), así como una abundante cantidad de aplicaciones informáticas en esta lengua.

Nesta definição temos a contradição imposta pela forma de hierarquizar a relação entre as línguas, ou seja, ao se dizer das grandes línguas do mundo, coloca-se necessariamente a assimetria, ou seja, há línguas normatizadas, e portanto superiores e há línguas não normatizadas, o que as determina enquanto inferiores. Assim esta diferença está marcada pelo processo de gramatização e instrumentação pelo qual essas línguas passaram. Desta forma, a mudança de status de língua “pouco dotada” para uma grande língua do mundo está em sua normatização. A grande questão, entretanto, está no perigo de extinção que ameaça estas línguas na medida em que são faladas por um número muito reduzido de falantes.
Assim, para salvarla es necesario ensenarla por todos los medios técnicos posibles para incrementar este número. A Internet, o ciberespaço, com sua universalidade de intercambio cultural e lingüístico, é a grande chave que pode garantir a salvação das línguas em extinção. O discurso sobre o meio ambiente passa a incluir os problemas lingüísticos, as diferenças, que devem ser combatidos como forma de exercício da democracia. A Internet aparece como lugar propício para esta realização. Ao garantir espaço para todas as línguas, inclusive a indígena, no ciberespaço, garante-se a sobrevivência das “línguas pouco dotadas”.
Outra questão posta é que mesmo línguas majoritárias podem ser pensadas enquanto línguas pouco dotadas, na medida em que ainda que não, necessariamente, contemplem todas as “desvantagens” anteriormente colocadas, mas por uma questão de recursos econômicos e de desenvolvimento tecnológico, não conseguem seu espaço na Internet. Alguns exemplos destas línguas seriam o bretão, o occitano e o vasco, na Europa; as línguas ameríndias na América; o Mianmar na Ásia; as línguas autóctones nas ilhas polinésias, micronésias e melanésias na Oceania. Na África as poucas línguas mais favorecidas se cuentan con los dedos de una mano y forman parte de las lenguas emergentes y, por lo tanto, de las lenguas poco dotadas.
No último parágrafo deste texto, temos o apelo ao passado e finalmente a forma como se pensa este acesso das línguas à Internet: mesmo uma língua que tenha um número pequeno de falantes poderia ter, na Internet, um espaço de documentação que poderia constituir una oportunidad formidable de conservar la memoria de esta, e assim seriam criados instrumentos didáticos para que estas línguas documentadas, arquivadas no ciberespaço, pudessem ser ensinadas às gerações futuras.
Diante do exposto, temos alguns pontos importantes sobre os quais refletir:

  1. A contradição: acesso de todos, regulado por alguns;
  2. A afirmação do exercício democrático;
  3. A instrumentação das línguas;
  4. o lugar das línguas indígenas;
  5. as línguas e a preservação cultural, retorno ao passado;
  6. as línguas pouco dotadas: hierarquização e relações assimétricas;
  7. as línguas em extinção.

 

Toda a proposta de uma política lingüística que versa sobre um pluri/multilingüismo está, necessariamente, funcionando em uma contradição. Ou seja, a idéia de uma política pressupõe uma normatização, uma regulação e, sendo assim, uma seleção daquilo que faz parte ou não desta norma. Da mesma forma que pensar em uma língua una, representativa de um grupo, dá-se também por um funcionamento contraditório. De acordo com Gadet e Pêcheux:

O que afeta e corrompe o princípio de univocidade na língua não é localizável nela: o equívoco aparece exatamente como o ponto em que o impossível (lingüístico) vem aliar-se à contradição (histórica); o ponto em que a língua atinge a história (Gadet e Pêcheux, 1981, p.64).

Desta forma, o cumprimento dos preceitos democráticos funciona pelo litígio; é, portanto, político, instável, assimétrico. Para Guimarães as línguas se relacionam em espaços de enunciação, que são marcados justamente pelo embate entre as línguas e sua distribuição aos falantes. É um espaço político. O político é aqui entendido como um embate que se dá entre uma norma e o que dela se exclui, na medida em que, na afirmação de pertencimento à norma por parte dos que desta estão excluídos, temos o conflito.

O político ou a política é a caracterização pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento do que não estão incluídos, indissociados desta normatividade. Desse modo, o político é um conflito entre uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento. (Guimarães, 2002, p.16)

Considerando as línguas nos espaços de enunciação, podemos dizer que estes espaços configuram uma política de línguas própria de seu funcionamento.  Assim as políticas lingüísticas, tal como as que analisamos aqui nestes documentos, aparecem como uma redução do político à normatização das relações, o que significaria apagar o próprio sentido do político na política das línguas. Isto corresponderia a retirar o funcionamento das línguas das condições próprias dos espaços de enunciação.
Desta maneira, ao afirmarmos o pertencimento de uma língua, excluímos a outra. A língua é normativamente dividida nos diversos modos de dizer.
Assim, pensar em política lingüística é “refletir sobre o modo de funcionamento do litígio no qual as posições procuram sustentar a igualdade de direito à enunciação, à significação” (Guimarães, 2006, p.12).
Essa forma de trabalhar as diferenças, portanto, funciona na exclusão, segundo Rodriguez (2008, p.26) “quanto mais se delimita, mais se exclui”. A própria forma de dizer as línguas indígenas revela o litígio: por que a necessidade de reafirmar “línguas indígenas? Veja que no sentido de “todas as línguas” não está contido o sentido de “línguas indígenas”. O importante é entender que isso se dá numa relação histórica e ideológica, ou seja, esta forma de significar as línguas indígenas está posta em uma relação histórica por determinações de ordem histórica, políticas e sociais, e não de maneira natural. De acordo com Rodriguez,

se a história é aquilo que muda (ou pode mudar), reconhecer essa determinação ideológica é considerar que a realidade humana e social não responde às injunções naturais (ou divinas) imutáveis, externas e independentes da vontade dos sujeitos, mas às suas ações políticas, que por serem contingentes podem mudar -  daí o caráter histórico da proposta da AD. É reconhecer, ao mesmo tempo, que os sujeitos não têm domínio absoluto sobre essas suas ações políticas, que por estarem determinadas ideologicamente (e não naturalmente) elas excedem sua consciência e suas intenções (Rodriguez, 2000, p.187).

A relação entre a preservação de uma língua e a conseqüente preservação de uma cultura está posta de maneira explícita no documento, ou seja, assegurar o direito de falar uma determinada língua no ciberespaço corresponde a documentar uma determinada cultura. De forma que esta documentação garante, no ciberespaço, a sobrevivência desta língua.
Acreditamos também existir uma certa sobreposição de uma política lingüística sobre uma política social, ou seja, sob o título de preservação lingüística e por extensão, cultural, há o sentido de uma certa remediação de problemas sociais e econômicos. Assim, os direitos iguais conferido às línguas no ciberespaço produzem um apagamento das diferenças políticas e econômicas, produzindo o sentido de que ao salvar as línguas em extinção, estaremos também salvando os povos que as falam, igualmente “pouco dotados”. Assim, a implementação das melhorias para que estas línguas excluídas tenham seus espaços “iguais” aos das outras línguas, mais bem dotadas, é dada a partir de mecanismos que regulam hierarquicamente estas relações. Da mesma forma, o desenvolvimento de tecnologias que permitam que “todas” as línguas tenham seu espaço garantido no ciberespaço exclui outros fatores que são importantes para que este acesso seja efetivo. Penso aqui nas comunidades que carecem de recursos básicos para sobrevivência, ou ainda nas tribos indígenas que nunca tiveram contato com as cidades, ou seja, há uma gama de necessidades destes grupos (comida, saneamento básico, por exemplo) que torna o acesso a computadores, a internet algo irrelevante. É neste sentido que esta política de acesso universal ao ciberespaço funciona no apagamento destes problemas sociais, já que acaba por, de certa forma, desconsiderá-los.

Conclusões

É importante sempre olhar para a idéia dos “direitos iguais para todos” com certa desconfiança, já que como vimos neste trabalho, os movimentos que procuram considerar a diversidade por meio de políticas reguladoras funcionam a partir de uma exclusão. Esta contradição constitutiva da própria noção de uma política lingüística traz essa impossibilidade de uma unidade, de uma saturação. É este o lugar do equívoco, o lugar do político. Na forma de se considerar a diversidade há um movimento que hierarquiza as línguas no caminho para uma unidade necessária à universalização do acesso a esse espaço desterritorializado, a Internet. Nestes documentos, pudemos perceber a forma como de um posicionamento que pretende dar um lugar igual às línguas menos dotadas, passamos para a fossilização das línguas funcionando na ilusão de preservação destas, o que acaba por desconsiderar as próprias condições históricas, ideológicas e materiais de constituição das línguas, pautando-se sobre uma idéia de estabilidade lingüística, que sabemos não existir. É desta forma que se prevê o exercício democrático: documentamos as línguas menos dotadas para que estas possam ser faladas, no futuro, a partir das línguas mais dotadas.

 

Notas

* Doutoranda em Lingüística no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP.

Título original “Comment assurer la présence d’une langue dans le cyberespace ?” traduzido por  Mayra Díaz e revisado por Adriana Lau.

2 A gramatização é entendida como “o processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalingüístico: a gramática e o dicionário”. (Auroux, 1992, p.65)

Referências Bibliográficas

AUROUX, S. A Revolução Tecnológica da Gramatização. Campinas: Editora da Unicamp, 1992
DIAS, C. P. A discursividade da rede (de sentidos): a sala de bate-papo HIV.2004.176 p. Tese.( Doutorado em Lingüística) – Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP : [s.n.], 2004.
DIKI-KIDIRI, M. ¿Cómo garantizar la presencia de uma lengua en el ciberespaço? Trad: Mayra Díaz, França, Unesco, 2007 Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001497/149786S.pdf . Acesso em 01/jun/2009
GADET, F. e PÊCHEUX, M. A Língua Inatingível. Campinas: Pontes, 2004.
GUIMARÃES, E. Semântica do Acontecimento. Campinas, Pontes, 2002.
___________. Espaço de Enunciação e Políticas de Línguas no Brasil. In:OLIVEIRA, S. E. de; SANTOS, J. F. dos. Mosaicos de linguagens. Campinas: Pontes; Guarapuava: CELLIP, 2006
ORLANDI, E. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003. 
___________. Discurso e Texto. Formulação e Circulação dos Sentidos. Campinas: Pontes, 2001
___________. Ética e Política Lingüística. In: Línguas e Instrumentos Lingüísticos, 1. Campinas: Pontes, 1998
Recomendación sobre la promoción y el uso del plurilingüismo y el acceso universal al ciberespacio” documento adotado pela Unesco em 2003 na 32ª  seção. Disponível em:
http://portal.unesco.org/ci/en/files/13475/10697584795Recommendation-Spa.pdf/Recommendation-Spa.pdf . Acesso em: 01/jun/2009
RODRÍGUEZ, Carolina. Da religião à cultura na constituição do Estado nacional. Texto apresentado no Encontro da ANPOLL de 2004 – Maceió.
_____________. Língua, Nação e Nacionalismo. Um Estudo sobre o Guarani no Paraguai. Tese de doutorado defendida no IEL/UNICAMP em junho de 2000.
____________. Relatório do projeto CaeL – Políticas Linguísticas, 2008.

 

ANEXO
Textos analisados

TEXTO 01
Recomendación sobre la promoción y el uso del plurilingüismo y el acceso universal al ciberespacio

Elaboración de contenidos y sistemas plurilingües

1. Tanto el sector público como el privado y la sociedad civil, en los planos local, nacional, regional e internacional, deberían trabajar para facilitar los recursos necesarios y adoptar las medidas requeridas para reducir los obstáculos lingüísticos y fomentar los intercambios humanos en Internet, promoviendo la creación y el tratamiento de contenidos educativos, culturales y científicos en forma digital, así como el acceso a los mismos, para garantizar que todas las culturas puedan expresarse y acceder al ciberespacio en todas las lenguas, comprendidas las indígenas.
2. Los Estados Miembros y las organizaciones internacionales deberían fomentar y apoyar la creación de capacidades para la producción de contenidos de origen local e indígena en Internet.
3. Los Estados Miembros deberían formular políticas nacionales apropiadas acerca de la
cuestión crucial de la supervivencia de las lenguas en el ciberespacio, a fin de promover la enseñanza de idiomas, incluidas las lenguas maternas, en el ciberespacio. Es preciso
intensificar y ampliar el apoyo y la ayuda internacionales a los países en desarrollo para
facilitar la creación de productos electrónicos sobre la enseñanza de idiomas a los que pueda accederse libre y gratuitamente, y para mejorar las aptitudes del capital humano en este ámbito.
4. Los Estados Miembros, las organizaciones internacionales y el sector de las tecnologías de la información y la comunicación deberían alentar iniciativas conjuntas de investigación y desarrollo y de adaptación local de sistemas de explotación, motores de búsqueda y exploradores de la Red con potentes prestaciones plurilingües y diccionarios y herramientas terminológicas en línea, y prestar apoyo a iniciativas internacionales concertadas para crear servicios de traducción automática a los que todos tengan acceso, así como sistemas lingüísticos inteligentes, como los que recuperan la información en varios idiomas, realizan resúmenes o síntesis y reconocen la palabra, respetándose cabalmente el derecho de traducción de los autores.
5. La UNESCO, en colaboración con otras organizaciones internacionales, debería crear un observatorio conjunto en línea, encargado del seguimiento de las políticas, normativas, recomendaciones técnicas y buenas prácticas que existan en materia de plurilingüismo y de recursos y aplicaciones plurilingües, comprendidas las innovaciones relacionadas con el tratamiento informático de las lenguas.

TEXTO 2
¿Cómo garantizar la presencia de una lengua en el ciberespacio?

  1. Textos introductorio del documento

 

El ciberespacio esta abierto a todas las lenguas del mundo ya que su infraestructura no esta sujeta a la autoridad de un poder central que determine su uso. En principio, basta con disponer de una computadora que esté conectada a un proveedor de acceso a Internet para que la Red nos muestre datos textuales, iconográficos o sonoros en la lengua deseada. Sin embargo, para poner en marcha este principio, factor fundamental de la democracia a nivel mundial, se necesita reunir un cierto número de condiciones técnicas y de recursos humanos y financieros que serán analizados en el presente estudio. En la redacción de este documento, también quisimos responder de la manera mas sencilla posible a la siguiente pregunta: .Como hacer para que una lengua poco dotada de recursos lingüísticos y/o informáticos, e incluso de recursos humanos, encuentre un lugar en el ciberespacio y este presente de manera activa?

Por extensión, toda lengua que tenga una regular cantidad de recursos y que esté pobremente representada en el ciberespacio puede encontrar respuestas en este estudio. Aquí describiremos el camino más largo, el de una lengua que no tiene ni siquiera una representación escrita; sin embargo, otras lenguas más favorecidas encontrarán las etapas que les conciernen en este mismo recorrido.

Antes que nada, debemos responder a una pregunta previa: .Que es una lengua poco dotada? Es una lengua que no dispone, total o parcialmente, de los recursos esenciales de los que si disponen, por lo general, las grandes lenguas del mundo, como una ortografía estable en un sistema de escritura dado, obras de referencia (libros de gramática, diccionarios, obras literarias), obras de difusión masiva (prensa escrita y audiovisual, películas, canciones y música), obras técnicas y de aprendizaje (publicaciones técnicas y científicas, obras didácticas), diversos soportes de comunicación diaria (afiches, publicidad, correos, noticias, manuales, etc.), así como una abundante cantidad de aplicaciones informáticas en esta lengua. En el plano de los recursos humanos, una lengua poco dotada puede convertirse en una lengua en peligro de extinción si solo la utiliza un pequeño número de hablantes. En ese caso, para salvarla es necesario ensenarla por todos los medios técnicos posibles para incrementar este numero.
Felizmente, una lengua poco dotada no presenta necesariamente todas estas desventajas a la vez. Puede que la lengua sea mayoritaria, escrita y que se ensene en la escuela, y que, no obstante, tenga una penosa carencia de recursos informáticos o incluso lingüísticos en cantidad y calidad. Así pues, es mas preciso decir que las lenguas poco dotadas lo son de manera muy variada y van desde las lenguas en gran peligro de extinción hasta las lenguas emergentes que ya poseen una buena parte de estos recursos, pero que cuyo numero se estima insuficiente o incompleto. Numerosas lenguas en todos los continentes responden a esta definición de lenguas poco dotadas. En Europa podemos citar el bretón, el occitano o incluso el vasco; en América, casi todas de lenguas amerindias; en Asia, el Myanmar 1, por citar solo una de los cientos de lenguas; en Oceanía, casi todas las lenguas autóctonas de las islas polinesias, micronesias y melanesias.
En África, donde se habla un tercio de las lenguas del mundo —
2 000 lenguas aproximadamente—, las lenguas mas favorecidas (africano, swahili, hausa, etc.) se cuentan con los dedos de una mano y forman parte de las lenguas emergentes y, por lo tanto, de las lenguas poco dotadas.
Partiremos de la hipótesis mas favorable, es decir, una lengua que en el pasado fue portadora de una cultura floreciente pero que hoy en día solo es hablada por un punado de personas mayores en un pueblo pequeño en lo mas recóndito de la sabana africana, digamos en África central para ubicarnos lo mas lejos posible de todas las costas. Llamemos a esta lengua ndeka. Una lengua como esta no tiene prácticamente ninguna oportunidad de acceder algún día al ciberespacio dado que no son muchos los que la hablan y que, tras la muerte del ultimo hablante, corre el riesgo de desaparecer para siempre. Un día, un joven estudiante proveniente de este pueblo se da cuenta que herramientas como SPIP, Wikipedia y muchas otras podrían constituir una oportunidad formidable de conservar la memoria de esta 1 Nueva denominación de la lengua llamada anteriormente birmano.. lengua y, por ende, la de su pueblo y la cultura de sus ancestros. Este seria, incluso, el medio mas seguro de ensenar esta lengua a los jóvenes de su generación y darle una nueva vida. Digamos que este joven viene a nosotros para que lo orientemos en su proyecto. Con esta hipótesis en mente, nuestro análisis pretende ser didáctico con el fin de acompañar, paso a paso, a todos aquellos que se nos unirán en cualquier etapa del camino para llevar todas las lenguas poco dotadas, cualquiera sea su suerte, hasta el ciberespacio.

 

 

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