CALÇADAS: ESPAÇOS PÚBLICOS OU PRIVADOS?1
 
Neuza Zattar
UNEMAT/CÁCERES

 

RESUMO: Este artigo toma como objeto a re-funcionalização das calçadas quando elas deixam de servir como passeio de pedestres e passam, por exemplo, a servir a fins comerciais. A autora qualifica este gesto de invasionismo, e o analisa como efeito da contradição posta no texto de leis da cidade de Cáceres, no Mato Grosso, na delimitação das calçadas como espaço público ou privado. 

ABSTRACT: This article takes as its object the re-functioning of the sidewalks when they cease to serve as a pedestrian walkway and start, for example, to serve commercial purposes. The author describes this gesture as invasionism, and analyzes it as the effect of the contradiction in the delimitation of sidewalks as public or private in the texts of laws of the city of Cáceres in the state of Mato Grosso.

[...] mesmo numa cidade perdida nos confins da história ou da geografia há pelo menos uma calçada ou praça que é de todos e não é de ninguém. (Raquel Rolnik, 2004, p.20)

Nos dizeres urbanos que se entrecruzam nos espaços da cidade, circulam, com alguma freqüência, referências à calçada como o espaço público que está perdendo o seu estatuto de “passeio público” para espaços semipúblicos ou privados, pelas diferentes formas de ocupação e uso que interditam o acesso aos pedestres. 
Com uma diversidade de funções, as calçadas passam a ser identificadas não mais pela referência que as particulariza, mas, sobretudo, pelas relações de ocupação desses espaços por determinados atores sociais que, ao desenvolverem determinadas práticas sociais e de linguagem, emprestam-lhes novas identidades.
Deslocados de sua função primeira, tráfego específico para pedestres, os espaços das calçadas são re-funcionalizados para finalidades comerciais e utilidades pública e doméstica, imprimindo novos valores e novas relações ao cotidiano dos usuários e determinando-lhes a natureza: se público ou privado.
Às diferentes formas de ocupação, uso e re-funcionalidade dos espaços públicos das calçadas estamos chamando de invasionismo, uma prática que instala uma tipologia de ocupação determinada pelas relações comerciais e domésticas, e que funciona diferentemente, na forma de interdição, para os usuários (pedestres), os ocupantes (proprietários de imóveis e moradores), que fazem delas uma extensão do lar ou do comércio, e os fiscais da prefeitura (os agentes da lei), a quem cabe assegurar o livre acesso ao passeio público.
Enquanto dispositivo material, o invasionismo é identificado por equipamentos permitidos ou legais (postes de iluminação e de trânsito; telefone público [orelhão], hidrômetros), entre outros; e equipamentos não permitidos ou ilegais (os mobiliários comerciais, jardins, entulhos, plantação, publicidade, comércio ambulante), e outras funções imputadas às calçadas, que estabelecem limites ou interdição à passagem do pedestre.
O invasionismo, múltiplo em sua configuração e finalidades, se impõe como prática comum nas grandes metrópoles e irrompe no interior dos estados brasileiros, especificamente em Cáceres, Mato Grosso, instalando uma nova ordem que provoca tensão entre os que disputam os espaços para passeio e fins particulares e/ou comerciais.  Dada a multiplicidade de funções, a referência do invasionismo não é fixa, não é estável, e muda conforme a relação que o pedestre estabelece com a interdição material e simbólica que se interpõe em seu caminho.
A natureza da utilização dos espaços públicos urbanos das calçadas ou o invasionismo, que significa um outro modo de organização da cidade em sua dimensão pública, impõe questões como: a) a calçada, espaço urbano criado especificamente para o pedestre, é um patrimônio público ou privado?; b) quem é o responsável pela edificação e manutenção das calçadas? d) o que diz a lei municipal sobre os direitos às calçadas? Estas questões se constituem no ponto de partida para analisarmos enunciativamente como o poder público institui as relações público/privado das calçadas, espaços compreendidos como territórios urbanos de sociabilidades linguajeiras “que vão imprimindo formas de significação próprias às diversas práticas que as engendram”.2
Aldaísa Sposati, ao comentar a obra O mundo das calçadas (2000), de Eduardo Yázigi, diz que a calçada é o espaço que interliga vizinhos, amigos e conflitantes, em usos e ocupações. Daí dizer que a calçada não é compreendida somente como espaço físico, geográfico ou ambiental, mas como espaço simbólico que significa pela sua história, pela conviviabilidade e conflitos entre vizinhos, passantes e ocupantes e pela demarcação de um território que é público pela localização na espacialidade da cidade, e privado pela re-funcionalidade que lhe é atribuída.
Na perspectiva de que a língua funciona ao ser afetada pelo interdiscurso (Guimarães, 1995, 2001) ou por discursos formulados anteriormente e que constituem o memorável (o passado do acontecimento), propomos analisar como a relação público/privado, na constituição dos espaços públicos urbanos das calçadas nos documentos que institucionalizam a cidade de Cáceres-MT, organiza e altera a relação de propriedade desses territórios entre o poder público e o sujeito citadino. 
Para esta reflexão, utilizamos como dispositivos de análise a ata de fundação da cidade, códigos de posturas e a legislação municipal que organiza física e juridicamente os espaços públicos da cidade de Cáceres.

O público e o privado
A ocorrência das primeiras diferenças entre público e privado, no final do século XVI, deu-se com o uso de público como “aberto à observação de qualquer pessoa” e de privado significando “uma região protegida da vida, definida pela família e pelos amigos” (Sennett, 1988, p. 30). Nessas definições, a oposição é marcada entre a exposição do indivíduo, no espaço que é de todos, e a proteção da individualidade no espaço fechado, na privacidade do lar.
No decorrer dos séculos, o significado desse par sofre mudanças de ordem econômica, moral, social e sobretudo familiar, determinando os papéis do homem na sociedade, e chega ao século XX mantendo a oposição entre a exposição aberta a todos e a individualidade protegida da exposição. No entanto, nos dias atuais, é possível dizer que a diferença público/privado pode ser atravessada por outros modos de ocupação dos espaços públicos urbanos, em que o privado, a individualidade familiar, também fica aberto à exposição de todos, a exemplo de moradores de ruas.
Neste item, pretendemos mostrar como a ata de fundação da Villa Maria do Paraguai3 (1778) institui a linguagem urbana na organização da espacialidade da Villa, ou dito de outro modo, como a linguagem, enquanto relação de sentidos, designa os espaços públicos, instituindo sujeitos na relação entre público (Câmara que cede terras) e privado (o indivíduo que adquire terras para edificação) nos Códigos de Posturas da Villa (1860) e da cidade (1876).
Vejamos o trecho da ata que organiza a Villa Maria, no Estado de Mato Grosso, na segunda metade do século XVIII.

[...] deixando de fazer mais algum benefício a várias cabanas existentes, só nelas assistem enquanto fabricavam casa no novo arruamento. [...] ruas atualmente demarcadas e abalizadas terão os seguintes nomes, a saber: a primeira, [...] rua d’Albuquerque, a imediata, para o sul, rua do Mello, as quais ambas vão desembocar na praça [...] as travessas [...] que dividem os quartéis das ditas ruas, se denominarão travessa do Pinto, travessa do Rego, [...] cujo número tem também as mais quadras, poderão os moradores erigir a sua Igreja [...] e o terreno da frente da praça por agora se não ocuparia em casas, deixando-o livre para as do Conselho e cadeia se deverem fabricar4. (Grifos nossos)

Na espacialidade rural da Villa, a extensão das ruas e travessas fundacionais destinava-se à circulação de pedestres, carros de bois, tropeiros e cavaleiros e chegava até os portais das construções, forjando a imagem de que não havia separação entre a rua (espaço público) e o casario (espaço privado), pela ausência de calçamentos/calçadas. Nesse espaço de transição, o rural sem nome perde a referência de caminho/entreposto entre Cuiabá e Vila Bela e passa a ser identificado como o urbano que se funda nomeado pela textualidade da ata de criação da Villa Maria do Paraguai.
A linguagem urbana, nesse texto, funciona como a lente do colonizador português que vai compondo e demarcando os espaços da Villa, a partir do memorável das Leis das Índias que regulamentavam a fundação das cidades portuguesas e espanholas na América.
Nesse documento histórico, o limite entre o rural (o antes) e o urbano (o depois) é marcado simbolicamente pela imagem das “cabanas”, habitações rurais que, não se enquadrando nas normas de reorganização da espacialidade da Villa, são instadas a desaparecer, como podemos ver em “deixando de fazer mais algum benefício a várias cabanas existentes, só nelas assistem enquanto fabricavam casa”. Ou seja, a existência e o uso das “cabanas”, naquele momento de transição do rural para o urbano, ficam condicionados à construção de “casa”, sustentados pela presença do advérbio “só” e da conjunção temporal “enquanto” no enunciado.
A imagem das “cabanas”, naquele chão sem dono agora institucionalizado, constitui-se em um confronto entre o passado e o presente, o atraso e o progresso, a terra sem lei e a civilização, o interesse público e o interesse privado. E da mesma forma, por conta do novo ordenamento espacial, separa as relações sociais entre o cidadão rural e o cidadão citadino. 
Espacialmente, a forma “cabanas” constitui o fora do novo espaço em oposição ao planejamento das edificações sob as formas de linguagem “casa”, “arruamento”, “ruas demarcadas e abalizadas”, “praça”, “travessas”, “quartéis”, “quadras”, “Igreja”, “Conselhos” e “cadeia”, que vão compor a urbanização fundadora, instaurando sujeitos nas suas diferentes práticas de linguagem determinadas pelas relações social, política, jurídica e religiosa, bem como pelos conflitos que delas podem decorrer. Ou como diz Orlandi (2004, p. 14), “o sujeito urbano se constitui com seus modos de manifestação e a maneira com que vive, resiste, transforma, irrompe com novas formas de sociabilidade.”
No aspecto da normatização, a ata de fundação toma a linguagem como um código de posturas que disciplina a ocupação do entorno da praça, estabelecendo distintos territórios para a edificação das instituições públicas e das instituições privadas, como se observa no enunciado: “poderão os moradores erigir a sua Igreja [...] e o terreno da frente da praça por agora se não ocuparia em casas, deixando-o livre para as do Conselho e cadeia se deverem fabricar”. Os sentidos de futuridade na ocupação desses territórios no espaço da Villa se movimentam pela presença da expressão dêitica “por agora”, significando que os limites preliminarmente definidos serão irrompidos pela ocupação do território público pelo privado.
A constituição de espaços urbanos separados remonta, no Brasil, à Corte portuguesa instalada na cidade do Rio de Janeiro, com a separação da residência do local de trabalho e a segregação social que separa fisicamente o território do patrão do assalariado. Esta separação vai contribuir para a reorganização do espaço de moradia, enquanto domínio da vida privada, em oposição ao que fica fora desse domínio, o público, o aberto à exposição geral. 
Decorrido quase um século da fundação da Villa Maria, outros mecanismos para organização da cidade surgem com o loteamento dos espaços públicos e a aquisição de lotes urbanos, constituindo a relação público/privado através do chamado Código de Posturas instituído em 1860. 
Esse Código traça o planejamento do espaço da Villa, normatiza a edificação de prédios particulares, estabelecendo as primeiras relações de compra e venda entre público (a Câmara que concede terras) e privado (aquele que obtiver a concessão pagará).
Vejamos o funcionamento dessa relação nos artigos abaixo:

Art. 17 – À Câmara compete conceder terras para aforamentos, para edificar prédios urbanos [...]

Art. 18 – O que obtiver a concessão pagará cem réis por braça de frente e assim qualquer outra pessoa para quem passar o domínio, tanto por título de compra, como por sucessão, doação ou troca. (Grifos nossos)

A organização do espaço, nesses artigos, se dá pela constituição dos sujeitos representados, de um lado, pelo poder público e, do outro, pelo virtual proprietário de terras que, interpelados em sujeitos, “significam e são significados em seus sentidos sociais públicos urbanos” (Orlandi, 2001, contracapa).
Nesse texto jurídico (Art.18), o direito à concessão de terras se particulariza pelo poder econômico do cidadão que dispuser de recursos para adquirir terras para futuras instalações. Podemos dizer que a linguagem desse Código antecipa, pelo efeito da argumentação, as primeiras redes de sociabilidade dos agentes públicos e privados com a urbanização da Villa, ao instituir modalidades de comercialização das terras públicas da União através da Câmara: “O que obtiver a concessão pagará [...] tanto por título de compra, como por sucessão, doação ou troca”.
Nessa transação, há uma memória que orienta a relação dos sujeitos da linguagem, reverberando sentidos de que a enunciação do comércio de terras urbanas está tomada por outra enunciação já dita, já ouvida.
No Código de Posturas de 1876 da Câmara Municipal da cidade de São Luiz de Cáceres, o Capítulo 1º, que trata da “Demarcação e Embelezamento da Cidade”, descreve a construção das calçadas, assinalando o uso delas para “passeio geral”.

Art. 3º. – Os prédios que novamente se fizerem deverão ser edificados com quatro metros e meio de altura, e bem assim calçados em toda a extensão de sua frente, com pedras ou tijolos, com espaço para o passeio geral [...].

O infrator será punido com a multa de dez a vinte mil réis ou com cinco dias a dez de prisão. (Grifos nossos)

Art. 4º. – A Câmara mandará fazer todos os aterros e benefícios que julgar necessários para beleza e asseio das ruas e praças da cidade, assim como tudo o que estiver nas suas atribuições [...] (Grifos nossos)

O Código, através do artigo 3º, estabelece com o sujeito citadino uma relação de deveres com as coisas públicas, ao condicionar a construção de novos prédios ao calçamento dos espaços destinados às calçadas. A regularidade do artigo se desfaz ao estabelecer punição àquele que se recusar a cumprir o dispositivo da lei: “O infrator será punido...”
Observa-se aí um deslocamento de sentidos na constituição do sujeito citadino, em que o sujeito de deveres desloca-se para a posição de sujeito “infrator”, assujeitado pela norma punitiva do Código de Posturas. Aqui, o sujeito citadino é interpelado pelo jurídico que busca, por força da lei, aplicar aos possíveis infratores os dispositivos do Código, advertindo que quem não se submeter às normas “será punido com multa de dez a vinte mil réis ou com cinco dias a dez de prisão”.   
Chama a atenção nesse texto a constituição do sujeito cidadão pelo jurídico. Dotado apenas de deveres, o sujeito citadino se vê impedido de estabelecer relações de direito na urbanização da cidade, na qual o seu lugar como cidadão não pode ser reduzido.
No entanto, no artigo 4º, o jurídico, como forma de contemporizar as relações público/privado pelas medidas impostas, atribui outras responsabilidades ao poder público referentes à urbanização da cidade.
A definição de calçada como “espaço para o passeio geral” (Art. 3º) forma uma rede parafrástica com outras definições como “trânsito de pedestres” (Larrousse, Paris, 1995), “pedestre em público” (Robert Historique, Paris, 2000, apud Orlandi, op.cit, p. 43 e 47), em que a exposição fora do privado torna-se objeto de atenção pública.
Duas décadas depois, na gestão do Intendente João Campos Widal (1900-1902), a Câmara Municipal da cidade de São Luiz de Cáceres, ao aprovar um novo Código de Posturas, “autoriza o Intendente a calçar as frentes de todas as casas ou muros das principais ruas, praças e travessas da cidade” (Mendes, 1978, p.112).
A performatividade do enunciado, constituída na relação de lugares enunciativos, produz um duplo efeito de sentidos que afeta os interlocutores a que se destina; no caso, o Intendente e os responsáveis pela construção das calçadas. Mesmo não estando dito, há uma memória que organiza os deveres dos sujeitos citadinos (os moradores), constituindo uma seqüência enunciativa na relação público/privado: a Câmara autoriza o Intendente, que estabelece deveres aos proprietários de imóveis, que deverão cumprir o dispositivo de calçar as calçadas.
No apagar das luzes do século XX, a Lei n.º 9 de 21/12/1995, que institui o Plano Diretor do Município de Cáceres, na Seção X “Dos Passeios, Muros, Cercas e Divisórias em Geral”, diz:

Art. 282 - Os terrenos não construídos com frente para logradouros públicos serão obrigatoriamente dotados de passeios em toda extensão da testada. (Grifos nossos)

Art. 283 - Compete ao proprietário do imóvel a construção e conservação de muros e passeios. (Grifos nossos)

O texto jurídico rememora as relações entre público/privado instituídas nos Códigos de Posturas, ao manter para os sujeitos citadinos deveres com as coisas públicas. Observa-se no texto que o poder público, ao  mesmo tempo  que impõe ao proprietário de imóvel a gestão das calçadas, faculta-lhe o direito ao uso desse território, gerando sentidos ambíguos sobre a  propriedade público-privado do espaço da calçada. Daí as questões: em que condições a lei municipal foi instituída para produzir determinados efeitos e não outros? De que modo é possível compreender esse enunciado?
Podemos dizer que o texto (Artigo 283), ao estabelecer deveres públicos ao proprietário de imóveis, transfere-lhe também direitos sobre o território das calçadas, mantendo o conflito entre público/privado. Daí dizer que os sentidos legislados como reguladores continuamente emergem, escapam, migram, tornando-se outros, mesmo que os sujeitos instituídos na linguagem desse documento possam divergir sobre esses sentidos.
Nessa relação ambígua, a calçada é compreendida, de um lado, como “logradouros públicos, dotados de passeios”, um espaço constitutivo da cidade, portanto, um espaço público urbano de livre acesso; e, de outro, pode ser interpretada como propriedade particular, extensão do morador ou do comerciante, numa dimensão em que o espaço público é sobredeterminado pelo uso particular pelo efeito do texto jurídico.
Na perspectiva em que tomamos a língua, como relação de sentidos, a escrita jurídica do Plano Diretor possibilita interpretações outras, pelo efeito ambíguo de pertencimento dos espaços da cidade que afeta o responsável pela “construção e conservação de muros e passeios” e organiza uma via de mão dupla de sentidos que autoriza/legitima não só o direito a edificar, mas também o direito de ocupar. 
Dividida entre o público e o privado, a calçada significa, na urbanização da cidade, um território que é “de todos e de ninguém”, por força da legislação municipal e da ambigüidade que o texto jurídico produz. Assim, na linguagem urbana o que determina se o espaço é público ou privado não são apenas as tintas impressas na lei, mas as pistas, os vestígios que sombreiam os textos jurídicos.  

Concluindo
Como vimos, o dualismo público/privado historicizado na escrita da ata de fundação, dos Códigos de Posturas e do Plano Diretor do Município de Cáceres tensiona os lugares de dizer e de interpretar, desestabilizando os sentidos das práticas de linguagem que significam e são significadas nos espaços públicos urbanos da cidade.  
Historicamente oposto, o par público/privado na lei estabelece relações de complementaridade e obrigatoriedade entre proprietários de imóveis e o poder público, na perspectiva de que a linguagem urbana funciona como uma interface de deveres legislados e de direitos interpretados que tensionam a conviviabilidade entre os habitantes da cidade e o poder público.  
No percurso da Villa à cidade, em que se constitui a diferença entre público e privado, o direito ao invasionismo ou formas de ocupação dos espaços públicos das calçadas constitui a memória do dizível pelo efeito das brechas produzidas pela própria legislação que, ao instituir deveres, institui também direitos sobre esses espaços ao proprietário de imóveis, produzindo sentidos ambíguos sobre a propriedade de um território que passa a ser utilizado por todos, mas que não pertence a ninguém. 
Assim, podemos dizer que nas novas formas de compreender os deveres e os direitos ao espaço público da calçada, enquanto efeito da relação público/privado, o sujeito citadino não se reduz ao proprietário de imóveis ou àquele que pode adquirir terrenos, “mas se pensa o morador, o ocupante, o passante, o que não tem lugar, todos como sujeitos que vivem a cidade em diferentes condições...” (Orlandi, 2001, contracapa).

 

Notas


1 Este texto é o resultado do desenvolvimento do projeto de pesquisa “Os modos de dizer dos cidadãos usuários dos espaços públicos das calçadas da cidade de Cáceres-Mato Grosso”, realizado na UNEMAT,  no ano de 2008. 

2 Cf. Projeto Labeurb, 1995.

3 O primeiro nome dado à cidade de Cáceres, Estado de Mato Grosso, em 1778.

4 Cf. Ata de fundação da Villa Maria do Paraguai redigida em 6 de outubro de 1778. In: História de Cáceres. Natalino Ferreira Mendes, 1978, p. 23. 

 

Referências Bilbiográficas

GUIMARÃES, E. Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da linguagem. Campinas, SP: Pontes, 1995.
____________. Enunciação e história. In História e sentido na linguagem.ORLANDI, E.P. (org.) Campinas, SP: Pontes, 1989.
MENDES, N. F.. História de Cáceres.  Cáceres, MT, 1978.
ORLANDI, E. P. Tralhas e troços: o flagrante urbano. In: ORLANDI, E.P. (org.). Cidade atravessada: os sentidos públicos no espaço urbano. Campinas, SP: Pontes, 2001.
_____________. Para uma enciclopédia da cidade (org.). Campinas, SP: Pontes/ Labeurb/Unicamp, 2003.
ROLNIK, R. O que é cidade? São Paulo: Brasiliense, 2004.
SENNETT, R. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Tradução Lygia Araujo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
YAMADA, A. C. F. A alma da cidade. Personagens de Florianópolis. HTTP://www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc111/mc111.asp
YÁZIGI, E. O mundo das calçadas. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP; Imprensa Oficial do Estado, 2000.

 

Palavras-chave: calçada; leis; público e privado
Key-words: sidewalk; laws; public and private

 

>> Volta