A INSTALAÇÃO DOS SENTIDOS DE IMPUTAÇÃO A PARTIR DO DESLOCAMENTO DA FORMA VERBAL

Olimpia Maluf-Souza
UNEMAT

 

RESUMO: Este artigo analisa o tempo e o aspecto verbais na passagem do Discurso do Código Penal Brasileiro para o Discurso do Laudo Pericial de um caso policial conhecido nacionalmente: o do Maníaco do Parque. A autora mostra que é no cruzamento das temporalidades desses dois discursos que se constroem sentidos de imputabilidade sustentados pela Psiquiatria Forense, ao decidir sobre a necessidade de intervenção médica em detrimento da jurídica.

ABSTRACT: This article examines verbal tense and aspect in the passage from the Discourse of the Brazilian Penal Code to the Discourse of the Expert Report of a nationally known police case: that of the Manic of the Park. The author shows that it is in the intersection of the temporalities of these two discourses that is built the meaning of impunity supported by forensic psychiatry, in deciding on the need for medical intervention at the expense of juridical intervention.

Apresentação
A aproximação entre o crime e a loucura instituiu a figura do perito forense, que é um profissional com formação médico-psiquiátrica que se coloca a serviço da justiça para elaborar o laudo de higidez mental: avaliação das condições de saúde mental do sujeito quando seus atos (contravenções) suscitam suspeição sobre sua sanidade. 
Assim, a figura do perito regula-se, por um lado, pelo seu conhecimento médico-psiquiátrico e, por outro, pela legislação vigente no Código Penal Brasileiro – CPB (por nós denominado como Discurso da Lei Penal). Da confluência desses dois discursos, o médico e o jurídico, institui-se o Discurso do Laudo, que diz da posição discursiva adotada pelo perito para avaliar e decidir entre o crime e a loucura.
Vejamos, então, o recorte que pretendemos analisar no Discurso da Lei Penal:

Artigo 26: “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.
Parágrafo Único: “A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (Código Penal Anotado – p. 95).

O artigo 26 e o Parágrafo Único do mesmo Artigo instituem a condição de imputação1, ou seja, o Artigo 26 prevê a inimputabilidade (o agente era inteiramente incapaz de entender e de determinar-se) e o Parágrafo Único desse mesmo artigo institui a redução da pena, considerando a possibilidade da semi-imputabilidade (o agente não era inteiramente capaz de entender e de determinar-se).
Da mesma forma, o que convencionamos inicialmente como Discurso do Laudo diz respeito às formulações usadas pelo perito no laudo para referir-se às condições de imputação do sujeito periciado. Assim, recortamos do laudo a formulação abaixo por se tratar do emprego de formas verbais diferentes das que são usadas pelo discurso da Lei Penal:

De acordo com o grau de comprometimento que a patologia apurada causar no que chamamos entendimento (razão) e determinação (vontade) do examinado será indicado seu grau de imputação jurídica. Três são as possibilidades de gradação da imputabilidade jurídica: Inimputabilidade – Quando o agente, à época dos fatos, for totalmente incapaz de entender e/ou determinar-se de acordo com o entendimento do caráter delituoso de sua ação; Semi-imputabilidade – Quando o agente, à época dos fatos, for parcialmente incapaz de entender e/ou determinar-se de acordo com o entendimento do caráter delituoso de sua ação; Imputabilidade – Quando o agente, à época dos fatos, for totalmente capaz de entender e de determinar-se de acordo com o entendimento do caráter delituoso de sua ação' (LP. p. 16, 17).

O Discurso da Lei afirma que o que é atualmente era no momento do cometimento do delito. O Discurso do Laudo se formula pelo será [...] quando for. Nossa proposição é a de analisar a passagem do é – era para o será – quando for, ou seja, que determinantes discursivos promovem o deslocamento, em última instância, do Discurso Jurídico (discurso da lei) para o Discurso Médico (discurso do laudo).
O Discurso da Lei é genérico, ou seja, aplica-se a todos os casos, a todos os sujeitos que cometem crimes motivados por uma possível loucura e que são encaminhados para a avaliação de higidez mental, por restarem dúvidas quanto a sua culpabilidade diante do ato criminoso. O Discurso do Laudo é específico, ou seja, lida com cada caso, de cada sujeito em processo de avaliação para a verificação da culpabilidade e a conseqüente prescrição da imputação compatível.
Em ambos os casos, tratam-se de textos que para a análise exigem necessariamente uma abordagem sobre a questão do Tempo e do Aspecto por se tratarem de categorias gramaticais mobilizadas em tais construções. Se tais categorias são suficientemente explicativas do deslocamento de um discurso para o outro, é o que esse estudo pretende mostrar.
Assim, parece-nos importante percorrer um pouco da Gramática Tradicional tentando entender como ela define essas categorias (Tempo e Aspecto), estabelecendo, até onde for possível, uma correlação explicativa do deslocamento já apresentado do Discurso Jurídico para o Médico.

As categorias tempo e aspecto: perfectividade e imperfectividade
Para referenciar esse percurso de análise, tomamos as considerações teóricas apresentadas por Comrie (1976)2.
Segundo o autor, o termo Aspecto não é tão familiar quanto são outras categorias verbais como a de Tempo ou de Modo. Esse fato deve ser, então, explicativo da grande confusão terminológica e conceitual que se criou em torno dessa categoria.
O tempo relaciona-se com a época da situação referida, geralmente remetida ao momento do discurso. Os tempos mais comuns encontrados na maioria das línguas distinguem três momentos ou distinguem certamente o Tempo como presente, passado e futuro. Uma situação descrita no tempo presente pode ficar temporariamente como simultânea ao momento do discurso (por exemplo, ‘João está cantando’); pode descrever-se no passado situando-se antes do momento do discurso (por exemplo, ‘João cantou, João estava cantando’); ou pode descrever-se no futuro, como subseqüente ao momento do discurso (por exemplo, ‘João cantará, João estará cantando’). Quando o tempo coincide com a época relativa à situação do enunciado, o tempo pode ser descrito como um dêitico. (Lyons, 1968, p. 275-81).
O Aspecto é uma categoria distinta da de Tempo, e é na oposição entre Perfectivo e Imperfectivo, tratada como aspectual, que se marcam essas diferenças, embora a terminologia gramatical das línguas individuais tenha a tradição de referi-las indiscriminadamente como Tempo.
Uma definição geral de Aspecto pode ser formulada como: ‘os aspectos são maneiras diferentes de abordar o conjunto de tempos verbais eleitos para uma dada situação’. Na definição adotada no dicionário Aurélio: “categoria gramatical que expressa as diferentes maneiras de se conhecer a constituição temporal interna de uma situação”.  Essa definição diverge um pouco da que é apresentada no Dicionário de Lingüística de Jean Dubois:

categoria gramatical que exprime a representação que o falante faz do processo expresso pelo verbo (ou pelo nome de ação), i. é., a representação de sua duração, do seu desenvolvimento ou de seu acabamento (aspecto incoativo, progressivo, resultativo, etc.) enquanto os tempos, os modais e os auxiliares de tempo exprimem os caracteres próprios do processo indicado pelo verbo, independentemente dessa representação do processo pelo falante. (...) (Dubois e outros, 1993, p.73)

Ou seja, o autor dá ênfase ao efeito que o verbo promove no sujeito, através daquilo que ele chama de representação e de processos que os verbos desencadeiam enquanto resultado, independentemente da representação feita pelo sujeito.
O Aspecto, segundo Comrie,  pode se definir, então, pela oposição entre o perfectum (perfectivo ou perfeito) e o infectum (imperfectivo). O Perfectivo diz respeito às formas verbais que abarcam a totalidade da situação, isto é, quando a situação é apresentada como um todo não analisado, enquanto começo, meio e fim amalgamados em um único segmento. Nesses casos, a situação se apresenta como completa, sem necessidade de fazer referência à sua constituição interna. Por outro lado, as formas verbais que exprimem duração, continuidade, dizem respeito ao Aspecto Imperfectivo, ou seja, as formulações no Imperfectivo abrem a estrutura na direção do Acontecimento Discursivo.       
Uma outra maneira de explicar a diferença entre o significado Perfectivo e o Imperfectivo é dizer que o Perfectivo aponta para uma situação externa, sem necessariamente distinguir a estrutura interna da situação. Enquanto que, olhar para dentro da situação refere-se ao modo Imperfectivo – que concerne crucialmente à estrutura interna da situação. O termo ‘Perfectivo’ contrasta-se com o termo ‘Imperfectivo’ e denota, então, uma situação vista em sua totalidade, sem consideração ao conjunto de tempos verbais eleitos para uma dada situação.
A diferença entre o Perfectivo e o Imperfectivo não é necessariamente, então, uma diferença objetiva entre situações, nem decorre do modo de apresentação da situação pelo locutor como sendo objetiva. É completamente possível referir-se ao mesmo locutor na mesma situação com uma forma Perfectiva ou então com uma forma Imperfectiva sem tornar-se contraditório.
O fato da concepção de Aspecto não se desligar da de Tempo, produz questionamentos sobre a distinção entre estes dois conceitos. Embora haja relação entre eles, ela se dá de várias e diferentes maneiras. O Tempo é uma categoria dêitica, isto é, encontra-se referido ao momento presente, mas também se dá em referência a outras situações. O Aspecto, no entanto, não diz respeito à relação do tempo da situação e a nenhum outro ponto do tempo, mas ao invés disso, ao conjunto de formas verbais eleitas para uma dada situação. É através da eleição desse conjunto verbal interno a uma dada situação que se pode indicar a diferença entre o tempo enquanto situação interna (Aspecto) e o tempo enquanto situação externa (Tempo).
O Aspecto sempre foi essencialmente apresentado em termos semânticos, ou seja, em referência à estrutura interna de uma situação, sem nenhuma discussão de sua expressão formal. Dessa forma, os detalhes mais adicionais dos dispositivos formais usados para expressar as oposições aspectuais nas diferentes línguas pertencem às gramáticas particulares dessas línguas. Contudo, a Lingüística Geral, ao abordar a questão do Aspecto, toma-o a partir da abordagem do significado e da forma, desde que não haja uma redução às formas particulares de línguas particulares.
Quando se diz que uma forma tem mais de um significado, trata-se, freqüentemente, do caso de um destes significados se apresentar como mais central e mais típico do que o outro. Nesses casos, é usual falar deste significado central como o significado básico. Em determinados casos a existência de significados básicos e secundários pode ser mostrada como resultado de um processo histórico onde o significado básico é o significado original, enquanto os significados secundários são adquiridos pelas extensões deste significado original, conduzindo finalmente a uma forma que adquire freqüentemente um significado básico novo muito mais amplo do que o significado básico original, pois incorpora um número considerável de usos que eram originalmente significados como secundários.
Nas discussões sobre Aspecto, ao contrário de muitas outras áreas da Lingüística, não há nenhuma terminologia geralmente aceita. Em muitos exemplos entre as línguas, a diferença é puramente terminológica, embora em muitos casos ocorra também diferença conceitual de grande relevância. Ou seja, as diferentes terminologias são usadas com freqüência para referir-se ao mesmo fenômeno, assim, as mesmas terminologias são freqüentemente usadas por lingüistas diferentes em conceitos radicalmente diferentes.
Para discutir Aspecto, é freqüentemente necessário consultar as diferenças entre estados, eventos, processos, etc. Entretanto, quando a língua ordinária não fornece técnica com uma quantidade limitada de sistematizações, uma metalinguagem para estas várias subdivisões, não fornece nenhum termo geral que subsuma a todas. O termo ‘Situação’ é geralmente usado como termo de cobertura (cover-term) geral, isto é, uma situação pode ser um estado, um evento, ou um processo. Para estabelecer uma distinção entre esses termos, pode-se afirmar o ‘Estado’ como sendo estático e o ‘Evento’ e o ‘Processo’ como sendo dinâmicos, isto é, ambos requerem uma entrada contínua de energia. Os ‘Eventos’ são situações dinâmicas vistas como um inteiro completo (isto é, Perfectivamente) e os ‘Processos’ são situações dinâmicas vistas em andamento, internamente (isto é, Imperfectivamente).
A distinção entre a Perfectividade e a Imperfectividade que vem sendo esboçada toma a Perfectividade como uma situação que indica o enunciado como um todo (único, inteiro), sem distinção das várias fases separadas que compõem essa situação; enquanto que na Imperfectividade dá-se atenção essencial à estrutura interna da situação.
A noção de Perfectividade é, com freqüência, inadequadamente difundida na literatura da Lingüística Geral e nas gramáticas de línguas individuais como sendo Aspecto. Isso se liga freqüentemente às avaliações incorretas do papel do Aspecto que às vezes se reivindica como forma Perfectiva.
As formas Perfectivas indicam situações de curta duração, enquanto as formas Imperfectivas indicam situações de longa duração. Contudo, é fácil encontrar exemplos das línguas individuais que contradizem esta afirmação, talvez por se tratar de situações mais fortuitas onde as formas do Perfectivo e do Imperfectivo podem ser usadas numa relação com o mesmo comprimento de tempo, sem nenhuma implicação necessária da duração que pode ser curta ou longa. Geralmente, o Perfectivo não pode ser definido como a descrição de uma situação limitada, ao contrário, deve ser de duração ilimitada, mesmo que o tempo se caracterize por indicar uma situação pontual ou momentânea.
O fato de a Perfectividade poder ser combinada com outras propriedades aspectuais – de acordo com as propriedades morfológicas e sintáticas gerais de cada língua – faz render formas Perfectivas que não são claramente pontuais. Assim, uma metáfora dessa situação pode ser a de que o Perfectivo se reduz a uma gota: uma gota é um objeto tridimensional, e pode conseqüentemente ter complexidade interna, embora seja, apesar disso, um único objeto com limites claramente circunscritos. Uma caracterização muito freqüente da Perfectividade é que ela indica uma ação terminada. O Perfectivo denota certamente uma situação completa, com começo, meio, e fim. Uma forma Perfectiva indica freqüentemente a conclusão de uma situação quando é contrastada explicitamente com uma forma Imperfectiva: desde que o Imperfectivo indique uma situação em andamento, e desde que o Perfectivo indique uma situação que tenha um fim, ou seja, o novo elemento semântico introduzido pelo Perfectivo é o da finalização da situação.
Similar à definição do Perfectivo como se referindo a uma ação terminada é sua definição como sendo um resultado, isto é, indicando o fim bem sucedido de uma situação, pois as formas Perfectivas de determinados verbos individuais indicam eficazmente o fim bem sucedido de uma situação. Finalmente, nós podemos considerar a visão de que o Perfectivo representa uma ação pura e simples, sem nenhuma implicação adicional. De fato, isto sustenta que os Perfectivos são membros não identificados de toda a oposição aspectual baseada na Perfectividade. Assim, o Perfectivo funciona como membro não marcado da oposição binária: Perfectivo x Imperfectivo.
Através da definição da Perfectividade deduz-se que esse fenômeno envolve a falta de uma referência explícita à constituição temporal interna de uma situação (o conjunto de tempos verbais eleitos para ela). Assim, as formas Perfectivas não podem ser precisamente indicadas, mas tal referência pode ser feita explicitamente por outros meios, tais como o significado lexical do verbo envolvido, outras oposições aspectuais, ou por outras facetas do contexto. 
A caracterização geral da Imperfectividade se mostra através da referência explícita à estrutura temporal interna de uma situação, o que possibilita olhar a situação internamente. Enquanto muitas línguas têm uma única categoria para expressar a Imperfectividade, há outras línguas onde a Imperfectividade é subdividida em um número de categorias distintas. A Imperfectividade se subdivide em Habitual e Contínuo, sendo que o Contínuo pode ser Não-progressivo e Progressivo. Há, contudo, algumas línguas que apresentam Aspectos que expressam agrupamentos diferentes destas distinções Semânticas.
Nas gramáticas tradicionais de muitas línguas, há uma categoria que cobre o todo da Imperfectividade. A impressão gerada é a de que a área geral da Imperfectividade deve ser subdividida em dois conceitos completamente distintos: um que se refere ao que é Habitual e o outro que se refere ao que é Contínuo. Assim, um diz que a forma Imperfectiva expressa uma situação Habitual ou uma situação vista em sua duração, e o termo ‘Imperfectivo’ é tomado como Contínuo-Habitual. Esta abordagem não reconhece que estas várias subdivisões juntam-se para dar forma a um único conceito unificado, como é sugerido por um grande número de línguas que têm uma única categoria para expressar a Imperfectividade no seu todo, sem considerar as subdivisões como as que marcam o que é Habitual e o que é Contínuo.
Para se discutir o que é Habitual e o que é Contínuo o mais fácil é começar dando uma definição positiva do que é Habitual, deixando o Contínuo para ser definido negativamente, como a Imperfectividade, do que não é Habitual.
Algumas discussões sobre o Habitual tomam-no, essencialmente, como sendo o mesmo que Iteração, isto é, a repetição de uma situação, a ocorrência sucessiva de diversos exemplos da situação dada. Contudo, esta terminologia é enganadora em dois sentidos: 1) a mera repetição de uma situação não é suficiente para que essa situação seja referida aproximadamente a uma forma especificamente Habitual (ou, certamente, Imperfectiva), 2) uma situação pode ser referida como forma Habitual sem que haja iteratividade total.
A característica que é comum a todas as situações Habituais, independentemente se também são ou não Iterativas, é que elas descrevem uma situação que é característica de um período de tempo prolongado, estendida assim ao fato de que a situação referida é vista não como uma propriedade incidental do momento, mas, precisamente, como característica de um período inteiro. Se a situação individual for do tipo que pode protelar-se indefinidamente no tempo, então não há nenhuma necessidade para a iteratividade ser envolvida, embora ela não seja igualmente excluída. Se a situação for do tipo que não se pode protelar, então a única interpretação razoável envolverá a Iteratividade.
O problema é justamente o que constitui uma característica aspectual de um período de tempo prolongado: ao invés de uma situação acidental ela é mais conceitual que Lingüística. Ou seja, uma vez que nós nos decidimos que algo constitui uma situação característica, nós estamos livres para usar uma forma explicitamente Habitual para descrevê-la, mas a questão envolve decidir se a situação é característica e se ela não é, em si mesma, Lingüística.
Uma situação pode ser expressa como Habitual desde que ela possa ter o tempo suficientemente protelado ou possa ser repetida (iterada) em um número suficiente de vezes durante um período suficientemente longo. Assim, o que é Habitual é no início combinado com vários outros valores aspectuais semânticos: aqueles apropriados ao tipo de situação que é prolongada ou iterada.
As definições de Progressividade freqüentemente encontram, em gramáticas tradicionais, falhas ao demonstrar a diferença entre a Progressividade e a Imperfectividade. Primeiramente, a Imperfectividade se inclui como um caso especial do que é Habitual, e uma situação pode ser vista como Habitual, sem que ela seja vista como Progressiva. Nesse sentido, a Progressividade é similar ao que é Contínuo, que é definível como Imperfectividade e que não é ocasionado pelo que é Habitual. Assim, a Progressividade pode não ser incompatível com o que é Habitual: uma situação dada pode ser vista como Habitual e como Progressiva, isto é, cada ocorrência individual da situação é apresentada como sendo Progressiva, e o total de soma de todas estas ocorrências é apresentado como sendo Habitual (o Habitual de um Progressivo). Entretanto, o que é propriamente Habitual não é suficiente para requerer ou permitir o uso de formas especificamente Progressivas.
O que é Habitual não determina a Progressividade, assim igualmente, a Progressividade não determina o que é Habitual, isto é, uma situação pode ser vista como Progressiva sem ser vista como Habitual, desde que ocorra a especificação da ocasião em que a situação ocorreu levando à possibilidade do significado do que é Habitual. Pode-se concluir, então, que a Progressividade tem o mesmo significado do que é Contínuo, desde que o que seja Contínuo seja próprio da Imperfectividade e não seja determinado pelo que é Habitual.
As diferentes teorias psicológicas diferem no que diz respeito ao como se dá o processo de percepção ativa, e não existe nenhuma razão para supor que a língua pressupõe uma resposta única que classifique a percepção como um Estado ou como uma Situação dinâmica.
A discussão sobre a questão do Aspecto Perfectivo e Imperfectivo e as implicações dessa categoria com a de Tempo é longa e variável nas diferentes línguas. Esse, contudo, não é o propósito desse estudo, uma vez que nossa pretensão se prende à análise de algumas formas verbais empregadas no Discurso da Lei (Artigo 26 e Parágrafo Único do mesmo Artigo), bem como, nos deslocamentos do Discurso do Laudo (paráfrase dos artigos de lei formulada pelo perito forense). Como a Gramática das várias línguas não dá conta desses efeitos de sentido impostos pelo emprego dessa forma verbal e nem é explicativa dos deslocamentos eleitos para esse estudo, tentaremos abordá-los por um outro viés: o semântico-discursivo.  

O funcionamento do interdiscurso nas formas verbais eleitas para o laudo
Dados os limites conceituais da Gramática e da Semântica Clássica para explicar as formas verbais eleitas para a análise, bem como, os deslocamentos produzidos pela formulação de um discurso pelo outro (o do Laudo pelo Legal), passaremos a apresentar, do ponto de vista semântico-discursivo, aspectos que possibilitam a compreensão do funcionamento dessas duas ordens de discurso, o que, em última instância, dará visibilidade aos deslocamentos produzidos e mostrará o atravessamento discursivo que incide na ‘eleição’ das formas verbais dos dois discursos.
Para interpretar esta questão das formas verbais vamos retomar aqui uma descrição proposta por Guimarães (1979, p. 157-167) para o Imperfeito. Ele analisava o funcionamento de enunciados modalizados em português e se deparou com uma questão: por que não é possível o enunciado foi certo que ele viria enquanto é possível o enunciado era certo que ele viria, ou foi possível que ele viesse e era possível que ele viesse?
Sem entrar nos detalhes da análise então proposta, o que nos interessa aqui é a solução a que ela leva. Para Guimarães, a diferença fundamental é que o Imperfeito não é uma forma do passado, enquanto o chamado Pretérito Perfeito sim. Ou seja, o Pretérito Perfeito marca um passado relativamente ao presente da enunciação. Por exemplo, em é certo que ele veio ontem se tem um presente da enunciação (que ele chama de Te), tempo da certeza (é certo agora, no momento em que se fala) e um passado a esse presente (a vinda de alguém), que o autor representa como Te-1.
Em oposição a esta relação temporal, as formas do Imperfeito não marcam o tempo presente da enunciação. Elas são fundamentalmente formas Imperfectivas, no sentido dado ao Imperfeito por Comrie, tal como mostramos antes. Ou seja, o Imperfeito representa a constituição interna da temporalidade. Deste ponto de vista o Imperfeito seria representado por Ti-1,i,i+1. Nesta representação i é uma variável e o Imperfeito é visto como uma forma verbal que institui um parâmetro temporal, distinto do presente da enunciação e significa fundamentalmente a imperfectividade. Desse modo ele não pode significar um outro presente para outros tempos que serão passados ou futuros relativamente a este parâmetro de temporalidade que não é o do presente do eu.
Parece importante, então, verificar como o ‘era’ pode significar passado, pois, por outro lado, como nos diz Guimarães (1979, p.196), “nos funcionamentos narrativos o Imperfeito pode significar um passado imperfeito, de forma a se representar por Ti = te-1 e o Imperfeito significa T t(e-1)-1, te-1, t(e-1)+1”.
Tomemos o condicional se eu (n):     

No Discurso da Lei há um presente da Enunciação:

No Discurso do Laudo, se era, num momento do tempo: Quando for [...] Será:


No Discurso da Lei há também um presente da Lei


que se representaria como:         

No Discurso do Laudo também há um presente do Laudo


que se representaria como:

Na forma do Laudo, o erasignifica o passado do acontecimento e o é o presente do Laudo. Assim, a formulação: “ele será considerado semi-inimputável quando for parcialmente incapaz de entender e de determinar o caráter criminoso” é uma paráfrase do Discurso da Lei quando ela preconiza, através do Parágrafo Único do Artigo 26, sobre a semi-imputabilidade: “A pena pode ser reduzida [...] se o agente [...] não era inteiramente capaz [...]”. 
No Discurso da Lei, existe uma universalidade com relação a um determinado tipo de sujeito que comete crime: aquele que não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. O que marca esse funcionamento é a forma verbal, que produz como efeitos de sentido tanto o aspecto de universalidade da lei – é todo o sujeito – quanto o aspecto de perenidade da doença mental pela impossibilidade da cura – é o que era incapaz, ou seja, uma vez incapaz de uma forma de discernimento para sempre incapaz.
Entretanto, para analisar o que dispõe o Parágrafo Único do Artigo 26, é necessário considerar antes o que dispõe o caput desse artigo: É isento de pena o agente [...] que [...] era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz [...].
Graficamente, o Artigo 26 poderia ser representado por:

O que se pode concluir é que o era incapaz não se trata de um tempo passado relativamente à enunciação, mas ao momento da avaliação ou do julgamento3, assim como o é isento é a conclusão do julgamento que, embora pareça um tempo presente carrega todos os efeitos de sentido de uma futuridade, pois dispõe, em última instância, sobre os encaminhamentos institucionais aplicados ao sujeito, determinando, inclusive, a sua vida futura. Ou seja, a temporalidade do era incapaz      é isento não é a do presente da enunciação.
O emprego dessas formas verbais parece produzir um efeito de sentido que diz, então, de uma relação desterritorializada, tanto espacial quanto temporal, pois a lei estabelece, no momento presente, os parâmetros para a aplicação das condições de imputação para atos cometidos pelo sujeito num passado remoto ou não, com vistas à sua institucionalização futura (prisão ou manicômio judiciário). Ou seja, essas formas verbais carregam uma movência, um deslizamento, uma deriva de sentidos que não se explicam somente pelas características da estrutura interna de uma situação indicada pela oposição entre o Perfectivo e o Imperfectivo. Tanto o era incapaz quanto o é isento carregam um funcionamento genérico ligado a uma imperfectividade, ou, nas palavras de Guimarães, ambas as formas verbais abrem a estrutura na direção do Acontecimento. 
Assim, as formas verbais em estudo só se tornam explicáveis a partir da possibilidade introduzida por Guimarães (2002) de tomá-las como Acontecimento nos Discursos (tanto da Lei quanto do Laudo). Para o autor, o acontecimento discursivo apresenta uma diferença na sua própria ordem, ou seja, tomar as formas verbais eleitas para esse estudo como acontecimento discursivo implica em considerá-las como temporalizadas pelo próprio acontecimento. Assim, as formas verbais não se caracterizam como fatos no tempo, mas sim, por uma outra ordem temporal ditada pelo acontecimento que institui tais formas verbais. Nas palavras de Guimarães (2002), não é algo que “está num presente de um antes e de um depois no tempo”.
Graficamente poderíamos representar o era por:

Ou seja, o presente da enunciação é o acontecimento que faz com que o era incapaz funcione não como um passado absoluto, mas como um passado relativo à enunciação. Assim, é a memória discursiva que o acontecimento convoca que faz com que o era incapaz funcione como é incapaz e será sempre incapaz, ainda que o periciando possa ter se tornado capaz, ou seja, ainda que ele tenha se tornado capaz, no presente da enunciação do laudo ele continuará sendo isento, pois o que está em funcionamento é o atravessamento interdiscursivo instado pelo acontecimento que faz com que as formas verbais eleitas se desterritorializem e se atemporalizem, pois elas são efeitos de sentido do que o lugar de injunção entre o que o Discurso Jurídico e o Discurso Médico estabeleceram como sendo o funcionamento da doença mental.
Então, abrir a estrutura ou o enunciado na direção do acontecimento discursivo carrega os efeitos de sentido que faz com que a pura classificação da estrutura como Perfectiva ou Imperfectiva seja insuficiente para explicar a movência que se coloca em funcionamento nas formulações era incapaz           é isento.
No Discurso do Laudo, a paráfrase formulada pelos peritos produz os mesmos efeitos de desterritorialização e de atemporalidade que as formas verbais empregadas no Discurso da Lei. Ou seja, a paráfrase do Discurso da Lei formulada pelo Discurso do Laudo é afetada pelo mesmo lugar de inscrição da impossibilidade de cura da doença mental, ou seja, o será – quando for também coloca o caráter permanente, de cronificação para a doença mental: será sempre incapaz – quando for incapaz, ou seja, a doença mental pode se curar ou não, mas os efeitos de sentido que ela produz, aquilo que ela evoca enquanto funcionamento é o que permanece. Por outro lado, o quando for introduz, para o Discurso do Laudo, um funcionamento diferente do Discurso da Lei: o for não é, pois, um futuro, visto que o quando o coloca como uma condição.
Esse efeito de sentido se explica por duas razões: 1) no Discurso do Laudo, a formulação se refere a um crime que já aconteceu, portanto, a avaliação de um sujeito específico que será considerado incapaz quando for o caso; 2) no Discurso da Lei, o crime não aconteceu, ou seja, ela dispõe sobre a condição de imputação de sujeitos que porventura venham a cometer crimes sobre os quais a capacidade de entender e de determinar-se de acordo com o entendimento do caráter delituoso de sua ação esteja comprometido. É por essa razão que a lei é genérica, que ela não trata de um ponto do tempo, é por essa razão que ela lida com a estrutura aberta, ela produz efeitos de continuidade, porque ela não se reduz a um fato, a um caso. Pelo Discurso da Lei, mesmo o sujeito que por possibilidade tenha deixado de ser, será julgado pelo era.
Da mesma forma, o deslizamento produzido pelos peritos ao parafrasear o Discurso da Lei pelo quando for produz, como efeito, o for não com futuro, mas como condição que projeta para o futuro será. Ora, novamente a questão parece não se explicar pela determinação da categoria gramatical pela qual a estrutura se classifica.
A paráfrase do é – era pelo será – quando for produz um efeito contemporizador, modalizador que interpela o sujeito perito ao referir-se ao sujeito em julgamento. Essa interpelação é estritamente da ordem do Discurso Médico que, em termos do sujeito portador de doença mental, fica impossibilitado de fazer afirmações categóricas e definitivas.
O deslocamento que o perito promove ao formular o Discurso do Laudo se vincula aos sentidos constitutivos da doença mental. Assim, a temporalidade empregada no laudo, em ambos os discursos (da Lei – É           Era e do Laudo – Será             Quando for), é complexa porque a explicação só é viável a partir do momento que se toma esse deslocamento produzido como sendo filiado a uma memória de dizer os sujeitos que cometem crime sob a égide da loucura. Ou seja, o acontecimento discursivo convoca sentidos que produziram a confluência entre os discursos Médico e Jurídico, a partir da interpelação que toma a posição sujeito-perito. É por essa razão que o passado, o futuro e o presente têm outros tempos diferentes daqueles que classicamente se colocam.
Guimarães (2002) afirma que não é o sujeito que temporaliza, pois ele não é a origem do tempo da linguagem. Essa temporalidade é dada pelo acontecimento de linguagem, que se dá nos espaços de enunciação e, portanto, constitui-se como um acontecimento político. Tomar, então, o tempo na concepção da enunciação como acontecimento implica em considerá-lo numa dimensão relativizada, onde os aspectos histórico-sociais e ideológicos é que possibilitam analisar o emprego das formas verbais e o deslocamento produzido pela paráfrase: o efeito de atemporalidade e de desterritorialização resulta da discursividade que se instituiu em torno da doença mental – o caráter crônico que afeta os sujeitos que cometem crimes motivados pela loucura faz com que a noção clássica de passado (o momento de cometimento do delito) possa ser subvertida de forma a fazer projeções para o presente (decisão sobre o grau de imputação) e projetar-se para o futuro (o encaminhamento institucional).

 

Notas

A capacidade de imputação diz respeito à verificação da constatação da culpabilidade e, conseqüentemente, a aplicação de pena aos sujeitos mentalmente sãos e desenvolvidos, ou seja, que possuem capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento. As categorias de imputação são: imputável (totalmente capaz de entender e de determinar-se diante do ato criminoso), inimputável (totalmente incapaz de entender e de determinar-se diante do ato criminoso) e semi-imputável (parcialmente capaz de entender e de determinar-se diante do ato criminoso).

Bernard Comrie em seu livro “Aspect: An introduction to the study of verbal aspect and related problems” (Cambridge University Press – 1976) apresenta toda uma proposição teórica sobre a categoria Aspecto. Para tal empresa, ele toma exemplo de várias línguas para ilustrar o que ele classifica como diferença taxionômica ou conceitual. A tradução dos excertos da obra é de nossa autoria.

Dependendo da imputação aplicada após a avaliação pericial, o sujeito pode nem ir a julgamento – é o caso dos inimputáveis que depois de serem assim considerados são imediatamente encaminhados para os Manicômios Judiciários. Os que vão a julgamento são os semi-imputáveis e os imputáveis, pois ambos são considerados criminosos comuns, embora o julgamento do semi-imputável mereça distinções.

 

Referências Bibliográficas

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Palavras-Chave: tempo e aspecto verbal; psiquiatria forense; discurso jurídico
Key-words: verbal tense and aspect; forensic psychiatry; juridical discourse

 

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