CIDADE, VILLE, CITÉ: TRÊS PERCURSOS LEXICOGRÁFICOS1

Sheila Elias de Oliveira
DELET/UNICENTRO

RESUMO: Este artigo apresenta uma análise da palavra “cidade” e de seus equivalentes em francês “ville” e “cité” como entradas de dicionários monolíngües de Portugal e da França entre os séculos XVII e XIX. A autora mostra como essas palavras representam de modo particular a memória latina ligada a “urbs” e “civitas”e os sentidos urbano e político. 

ABSTRACT: This article presents an analysis of the word “cidade” (“city”) and its equivalents in French “ville” and “cité” as entries in monolingual dictionaries of Portugal and France between the 17th and 19th centuries. The author shows how these three words represent each in its particular way the Latin memory connected to “urbs” and “civitas” as well as the urban and political meanings.

Em francês, encontramos duas palavras que podem ser traduzidas, em português, por cidade: ville e cité. Os três nomes, cada um a seu modo, trazem consigo a memória das palavras latinas urbs e civitas, ligadas, respectivamente, à comunidade e o espaço urbanos e à comunidade e o espaço políticos. A relação com o par latino, entre outros traços, deixa uma marca morfológica nas línguas de Estado do Ocidente Moderno em um conjunto de palavras derivadas, das quais lembramos, em algumas dessas línguas, os nomes que funcionam como equivalentes de cidade: city (inglês) /cité (francês)/ città (italiano) /ciudad (espanhol), e os adjetivos que dizem respeito à coisa citadina: urbain (inglês/francês)/urbano (italiano, espanhol, português).
Cité, ville e cidade são nomes que não referem a objetos exclusivos de uma língua ou do povo que a fala, mas que estão em relação entre si e com outros nomes da civilização ocidental. Seu exame permitirá compreender as particularidades dessas palavras semanticamente próximas no francês e no português. Buscando compreender o modo como cidade, ville e cité significam no português e no francês o sentido urbano e o político e o modo como a definição lexicográfica representa ou não a ligação com o par latino urbs/civitas, apresentamos um estudo comparativo do percurso desses três nomes como entradas de dicionários monolíngües.
As obras escolhidas fizeram parte da construção do imaginário das línguas nacionais e oficiais substitutas ao latim em Portugal e na França; ambas são encomendas do Estado e foram tomadas como referência para a lexicografia monolíngüe posterior: o Dictionnaire de l'Académie Française e o Dicionário da Língua Portuguesa de Antônio de Morais Silva (doravante, Morais). Comporão o corpus as sete primeiras edições do Dicionário da Academia (1694, 1718, 1740, 1762, 1798, 1832-5 e 1878) e as oito primeiras do Morais (1789, 1813, 1823, 1831, 1844, 1858, 1877, 1889-91). Seguiremos estas obras até o final do século XIX, já que o século XX constitui um outro momento da lexicografia, influenciada pelo caráter científico da Lingüística, e das línguas, consolidadas como língua nacional e oficial nos dois países.

Definição e designação da palavra-entrada
O dizer do artigo lexicográfico traz uma representação do funcionamento semântico da palavra em um dado momento de uma sociedade. Esta representação se refaz (re-dividindo o real sobre o qual a palavra enuncia) pelo trabalho da polissemia no corpo definicional dos verbetes. A polissemia é entendida como “ruptura de processos de significação” e, enquanto tal, parte do funcionamento da linguagem junto à paráfrase, esta entendida como “diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado” (Orlandi, 2000, p.36). O movimento entre paráfrase e polissemia produz o trabalho sobre as filiações ideológicas representadas na memória discursiva, o interdiscurso.  
A enunciação do dicionário de língua procura arregimentar a polissemia, organizando em acepções distintas sentidos que por vezes se sobrepõem nas enunciações cotidianas. No entanto, a polissemia trabalha no artigo lexicográfico não só na relação entre as diferentes acepções, mas também entre elas e os exemplos, as composições ou derivações cujo núcleo é a palavra-entrada, a etimologia, enfim, elementos que usualmente são considerados laterais na interpretação da definição da palavra, centrada nas acepções.
Para os lexicógrafos, “definição” é sinônimo de “acepção” ou de “conjunto de acepções de um verbete”. Seja de um modo ou de outro, fundamentados na Semântica do Acontecimento, nós a consideramos como parte da designação da palavra no verbete, esta entendida como a significação de uma palavra, constituída em virtude de sua relação com outras palavras no acontecimento enunciativo, dada sua história de enunciações (Guimarães, 2002; 2007). A análise da designação da palavra-entrada no artigo lexicográfico leva em conta a relação entre as acepções e os outros elementos do verbete. Entendemos que juntos estes elementos atribuem sentidos, predicando-a.
A análise do conjunto de predicações sobre a palavra-entrada, que compõe o artigo lexicográfico, permitirá observar as divisões polissêmicas das palavras-entrada e a temporalidade instaurada pelo acontecimento enunciativo das definições. O presente do acontecimento está em relação com “um depois que abre o lugar dos sentidos” e um passado que é “rememoração de enunciações” (Guimarães, 2002, p.12). O passado recortado pelo acontecimento são rememorações de enunciações anteriores, que se sustentam nas posições interdiscursivas a que o dizer se filia. O presente da palavra, assim, fundado na memória interdiscursiva, arregimenta um passado e projeta sentidos, projeta interpretações. É nas diferentes temporalizações que se compõe a designação da palavra.

Cidade no Morais
O primeiro monolíngüe da língua portuguesa, o Dicionário da Língua Portuguesa Antonio de Morais Silva (1789), é lançado como uma adaptação do Vocabulário Português e Latino (1712), de Raphael Bluteau. O bilíngüe de Bluteau, diferentemente dos seus antecessores, apresenta acepções em português, e não somente equivalências da palavra-entrada na língua latina. Os exemplos também são traduzidos.
O artigo cidade do Vocabulário traz duas acepções. A primeira é: “Multidão de casas, distribuidas em ruas, & praças, cercadas de muros, &  habitadas de homens, que vivem em Sociedade, & subordinação”. Ela vem seguida do latim: “Urbs, bis.”. A segunda: “Os cidadãos, os moradores da Cidade” é seguida pelo latim: “Civitas, atis. Fem. & algumas vezes Urbs, bis.” Urbs diz respeito, portanto, à arquitetura e ao movimento humano – a distribuição das moradias, a vida em sociedade e subordinação; civitas, por sua vez, ao conjunto dos cidadãos, dos “moradores da cidade”, o que também está relacionado, ainda que secundariamente, à urbs. A civitas refere o conjunto de cidadãos; a urbs, o conjunto de cidadãos (tal como a civitas), o espaço que ele ocupa e o modo de organização e de vida neste espaço.
O artigo da primeira edição do Morais mantém duas acepções para cidade. A primeira: “povoação de graduação superior ás Villas” inscreve um sentido administrativo, e não sócio-arquitetônico, como na primeira acepção do Vocabulário; o presente de cidade rememora uma outra unidade político-administrativa: a vila, da qual cidade se distingue. A segunda acepção, como a segunda do Vocabulário, predica cidade pela presença humana, mas os sujeitos da cidade não são enunciados como moradores, e sim como “os que falam”; a cidade, por sua vez, passa a indicar não um conjunto de sujeitos, mas um espaço onde estão os sujeitos: “A Cidade por excellencia, se entende daquella onde estão os que fallão”.
A menção à fala pode ser associada à civitas latina, onde o “foro de cidadão” era atribuído aos moradores da cidade com direito à palavra. O Morais traria, assim, para a descrição da língua de Portugal, um rememorado da latinidade que não estava enunciado no Vocabulário. Por sua vez, esta acepção, ao dividir os sujeitos entre os que têm e os que não têm direito à palavra, se inscreve na mesma direção semântica do verbete cidadão (que analisamos em outro estudo), definido pelo gozo dos privilégios do foral da cidade. O sentido político é, nos dois verbetes do Morais, marcado pela desigualdade entre os sujeitos. 
Na segunda edição, de 1813, a única alteração é um acréscimo feito na primeira acepção, pelo qual se introduzem outros nomes de unidades político-administrativas – “Conselhos” e “povoações [grandes]” – como parte do passado português: “Antigamente derão este nome a Villas, ou Conselhos, e povoações grandes”.
A terceira edição, de 1823, não traz alterações para o verbete. Na quarta edição, de 1831, uma nova acepção é acrescentada: “Os homens, que a compoem, e habitão”. Ela vem seguida de dois exemplos; no primeiro deles, os que compõem e habitam a cidade são reescritos como “gente da cidade”, que é equiparada à “gente da vila” e oposta à “gente da corte”: “Gente da Cidade,  como de Villa; opposta á de Corte, ou Cortezã”; no segundo, a gente “da cidade” e a “gente da corte” são postas em paralelo, em uma mesma situação (“em pé entre as grades”), o que faz significar, contraditoriamente, a igualdade entre elas: “e toda a gente da Corte, e da Cidade, que estava em pé entre as grades”.
Lembremos que esta nova acepção metonímica reescreve a segunda acepção do Vocabulário de Bluteau: “os cidadãos, os moradores da cidade”. No Bluteau, ela é seguida de exemplos que colocam os moradores (cives) em relação convivial ou distinguem os homens da cidade (omnes urbani)dos homens do campo (omnes rustici). No Morais, ela distingue a gente da cidade da gente da vila, e opõe a gente da cidade à da corte. Ela é predicada, portanto, por um sentido político que não opõe o urbano ao não urbano, mas sim deixa entrever contradições na representação da ordem social: se a cidade é onde estão os que falam, conforme a acepção precedente, como interpretar a presença da “gente da corte”, ao mesmo tempo oposta pela própria denominação, mas igualada à “gente da cidade” pela situação posta no enunciado (estar “de pé entre as grades”)?
Na quinta edição, de 1844, não há alterações no verbete. Em 1858, no primeiro exemplo que ilustra a acepção metonímica, é acrescentada a oposição à gente do campo: “Gente da cidade,  como de villa, opposta á do campo, e também de corte, ou cortezã”. Ainda assim, o exemplo que coloca em paralelo a gente da cidade e a da corte não é alterado, o que indica que não é em relação à gente do campo que se estabelece o vínculo e a distinção entre a gente da cidade e a da corte. Na sétima edição, de 1877, não há modificações em relação ao nosso recorte semântico2.
Na oitava edição e última do século XIX, de 1889/1891, há uma mudança fundamental no núcleo do corpo definicional: a acepção “A cidade por excellencia, se entende de aquella onde estão os que fallam” é suprimida. As duas outras acepções são mantidas, sendo que àquela inscrita em 1831: “os homens, que a compõem, e habitam” é acrescentado, após um sinal de dois pontos, o enunciado “a cidade revolucionou-se”. A cidade é, então, segundo as acepções, unidade administrativa distinta da vila, de um lado, e conjunto dos homens que a compõem e habitam, de outro; estes, por sua vez, são predicados como agentes de uma revolução acontecida.   
Tomemos em conta outro estudo (Elias de Oliveira, 2006), no qual observamos no verbete cidadão desta edição do Morais a introdução de um sentido de igualdade política ligado à Revolução Francesa, ao mesmo tempo em que se enuncia como passado o cidadão dos “privilégios” garantidos pelo foral da cidade. Não podemos, então, deixar de ligar ao mesmo rememorado – o da Revolução Francesa – o acréscimo do enunciado que menciona a revolução da cidade, ao lado da supressão da acepção que define a cidade como lugar de privilégios, onde estão “os que falam”.
A revolução da cidade rememora a Revolução Francesa, aquela que tem como ideal, por meio da República, igualar a gente da corte, a da vila e a da cidade. Ao tempo em que se rememora a revolução da cidade, no entanto, o artigo do Morais não introduz uma nova acepção política para cidade. Resta observar, nos dicionários brasileiros e portugueses a partir do século XX, se uma nova acepção política surge. Nesta última edição do século XIX, o sentido político irrompe lateralmente, no exemplo que rememora a revolução da cidade.

Cité no Dicionário da Academia Francesa
No bilíngüe francês-latim tomado como referência para os monolíngües franceses – o Thresor de la langue française (1606), de Jean Nicot, o artigo cité traz a tradução civitas (o Thresor não traz definições em francês para estas palavras, como o Vocabulário de Bluteau faz em português para todas as entradas). Por sua vez, no artigo ville, cité é palavra-cabeça e sinônimo de ville, antecedendo as traduções oppidum e urbs; no primeiro exemplo do verbete, no entanto, contrariando as traduções enunciadas, ville é traduzida por civitas, palavra que dividirá a tradução nos exemplos com oppidum e urbs. Enquanto cité está remetida a civitas, ville está remetida a cité, oppidum, urbs e civitas.
A relação posta no Thresor indica que o par francês não faz mera tradução do par latino, mas o interpreta e, como veremos, re-significa ao longo do tempo. No primeiro monolíngüe do francês, de Pierre Richelet (1680), por exemplo, é o verbete cité que remete a ville, enquanto ville já não remete a cité, ao contrário do que acontece no bilíngüe de Nicot.
A acepção de cité de Richelet a enuncia como equivalente parcial de ville: “Ce mot signifie vile, mais il ne se dit ordinairement qu'en parlant des places où il y a deux villes, une vielle & une autre qui a été batië depuis.” [Esta palavra significa vile, mas não se diz comumente senão para se falar das praças onde há duas villes, uma velha e outra que foi construída a partir dela]. Como para cité, a acepção de ville de Richelet traz um sentido arquitetônico: “Vile ou ville, s. f. Lieu plein de maisons, & fermé de terrasses & de fossez, ou de murailles & de fossez.” [Vile ou ville, s.f. Lugar cheio de casas, e fechado por terraços e fossas, ou muralhas e fossas.]. Quando do seu primeiro registro no dicionário monolíngüe, portanto, cité se define a partir da ligação com ville e é sustentada por um sentido urbano-arquitetônico, e não por um sentido político.
Nas primeiras edições do Dicionário da Academia Francesa, a direção semântica do Richelet se mantém. Cité é definida não por um sentido político, mas sim por uma relação como o espaço urbano da ville. À diferença de Richelet, em outras acepções, a presença da instituição religiosa determina a arquitetura. Em 1694, a primeira acepção de cité traz ville como sinônimo e palavra-cabeça da definição: “Ville. Grand nombre de maisons enfermées de murailles” [Ville. Grande número de casas cercadas por muralhas]. A acepção é acompanhada de grupos nominais em que cité é articulada a adjetivos. Eles dizem da quantidade, da grandeza e da beleza da cité-ville: “Grande cité. cité nombreuse, une belle cité” [Grande cité. cité numerosa, uma bela cité]. A frase-exemplo que segue rememora uma cité particular: Jesuralém é referida como cidade [cité] santa: “Hierusalem s'appeloit la sainte Cité” [Jerusalém se chamava a cidade santa].
Na segunda acepção, o sentido de cité é restrito em relação ao de ville: “Le nom de Cité, Se donne particulierement aux villes où il y a Evesché; Et dans les grandes villes, Cité se prend quelquefois pour cette partie de la ville où est l'Evesché” [O nome de cité se dá particularmente às villes onde há episcopado; e nas grandes villes, cité se toma algumas vezes por esta parte da ville onde está o episcopado]. A cité é um tipo ou uma parte da ville, determinada, nos dois casos, pela presença da instituição religiosa, sob a forma do episcopado. Os exemplos rememoram Paris, a presença quantitativa da Igreja, e o título de um livro do epíscopo medieval Santo Agostinho, A cidade de Deus: “On divise Paris en ville, Cité & Université. il y a tant d'Eglise en la Cité. il y a un Livre de saint Augustin qu'on appelle la Cité de Dieu.” [Divide-se Paris em ville, Cité & universidade. Há tantas igrejas na cité. Há um livro de Santo Agostinho  que se chama a cité de Deus]. 
Em 1718, a primeira acepção, que reproduz a de 1694, é assinalada como sendo mais usada “presentemente na poesia e no estilo oratório”. Este comentário de restrição de uso indica o processo de desaparecimento da relação de sinonímia determinada pela arquitetura entre cité e ville. No entanto, esta acepção sinonímica permanecerá como primeira até o final do século XIX, sempre seguida do comentário de restrição de uso, que será reescrito na sexta edição, de 1832-5.
A segunda acepção de cité, que também repete a de 1694, é reformulada. A primeira parte do enunciado de 1694 “Le nom de Cité, Se donne particulierement aux villes où il y a Evesché” é suprimida; com isso, cité não é mais enunciada como um tipo de ville. A segunda parte é reformulada: “Et dans les grandes villes, Cité se prend quelquefois pour cette partie de la ville où est l'Evesché” torna-se nesta edição “Se prend en quelques villes pour la partie de la ville où est l'Eglise Episcopale” [toma-se em algumas villes pela parte da ville onde está a Igreja episcopal]. Os dois primeiros exemplos (que referem à divisão de Paris e à quantidade de Igrejas na cité) permanecem, e o último (que faz referência ao livro de Santo Agostinho) é suprimido. Uma terceira acepção é acrescentada; ela reafirma o sentido de cité como a parte da ville onde fica a Igreja principal, mas agora em villes não episcopais: “Il se dit aussi en quelques villes non Episcopales, De la partie de la ville où est la principale Eglise” [Diz-se também em algumas villes não episcopais da parte da cidade onde está a igreja principal].
A referência às villes não episcopais, ao lado da supressão da acepção de cité como tipo de ville onde há episcopado e do exemplo que faz referência ao livro de Santo Agostinho indicam que a relação com ville predicada pela presença da Igreja começa a se tornar o passado de cité. Na mesma direção, na edição de 1740, a segunda acepção recebe um acréscimo que faz com a presença da Igreja Episcopal seja um elemento segundo na definição da cité como parte da ville; o fato primeiro (acrescentado nesta edição) é a predicação de cité como a parte mais antiga da ville : “...se prend en quelques villes pour la partie la plus ancienne de la ville, & où est l'Eglise Episcopale” [toma-se em algumas villes pela parte mais antiga da ville, e onde está a Igreja episcopal].
A quarta edição, de 1762, não traz modificações. Na quinta edição, de 1798, os elementos que já compunham o artigo se mantêm; nesta parte do artigo, há uma única alteração, formal: a substituição da preposição en por dans no exemplo “Il y a tant d'Eglises dans la cité”. Mas o que torna a quinta edição fundamental na representação da história da palavra é a introdução de um sentido político, junto ao urbano, na definição.
Ele vem por uma nova acepção da palavra-entrada, e pelo acréscimo da expressão droit de cité. A acepção é: “Cité, au propre, se dit De la circonscription locale qui comprend la collection des Citoyens” [Cité, no sentido próprio, se diz da circunscrição local que compreende a coleção de cidadãos]. É a primeira acepção que não enuncia cité em relação a ville; cité é predicada pela presença dos cidadãos. Na acepção de droit de cité, a relação com ville é recolocada, mas, desta vez, ville é posta em paralelo a Estado livre: “Droit de Cité, est proprement Le droit qu'a tout homme né dans une Ville ou un État libre, d'élire ses Représentans ou ses Gouvernans, et de concourir à la confection des Lois” [Droit de cité, é propriamente o direito que tem todo homem nascido em uma ville ou Estado livre, de eleger seus representantes ou seus governantes, e de concorrer à confecção das leis].
Com a remissão a ville, o sentido político de cité não se separa de modo absoluto do urbano. A relação com ville está ligada à rememoração da Revolução em curso, como uma revolução política e urbana, pela palavra cidadãos, o adjetivo livre junto a Estado e a própria expressão droit de cité.
Na sexta edição, de 1832-5, o núcleo político do artigo é aberto por uma nova acepção: “Cité se dit en outre d'Une contrée ou portion de territoire dont les habitants se gouvernent par des lois particulières” [Cité se diz, além disso, de uma região ou porção de território cujos habitantes se governam por leis particulares]. Cité não é, nesta acepção, a coleção de cidadãos, mas o território governado por seus habitantes. Ainda que esteja formulada no presente (se diz/se governam), ela vem acompanhada de exemplos que rememoram a Antigüidade grega e romana: “Sous Tibère, on comptait soixante-quatre cités dans les Gaules” [Sob Tibério, contavam-se sessenta e quatro cités na Gália] e “Les cités de l'ancienne Grèce” [As cités da Grécia antiga]. Produz-se, assim, um efeito de disparidade temporal entre a acepção e os exemplos.
A acepção de cité introduzida em 1798 é reescrita: “Cité, au propre, se dit De la circonscription locale qui comprend la collection des Citoyens” se torna “Il signifie également, La collection des citoyens d'un État libre” [Significa igualmente a coleção de cidadãos de um Estado livre]. Cité refere, agora, não um lugar, mas um agrupamento humano, composto pelos cidadãos de um Estado livre. Embora cidadãos e Estado livre rememorem, na sincronia, a Revolução Francesa, um novo exemplo, articulado a esta acepção, os remete à Antigüidade grega: “Un Lacédémonien célèbre disait: “À Sparte, la cité sert de murs à la ville”” [Um lacedemoniano célebre dizia: “em Esparta, a cité serve de muros à ville”]. O efeito de disparidade temporal entre a acepção e os exemplos é reduplicado, e parece nos indicar uma indeterminação nos sentidos políticos sincrônicos da palavra.
A expressão droit de cité é também reescrita: “(...) est proprement Le droit qu'a tout homme né dans une Ville ou un État libre, d'élire ses Représentans ou ses Gouvernans, et de concourir à la confection des Lois” torna-se “Aptitude à jouir des droits politiques, conformément aux lois du pays” [Droit de cité, aptidão para gozar dos direitos políticos, conforme às leis do país]. A formulação fica menos específica; a menção ao voto e à elegibilidade é substituída pelo termo direitos políticos; não há nominação do sujeito político; antes, ele era referido como “todo homem nascido em uma ville ou Estado livre”. O nome do espaço jurídico de direito passa de ville/Estado livre para país. Dois exemplos são acrescentados; eles predicam o droit de cité pela não-universalidade e a transitoriedade: “Avoir droit de cité” [Ter droit de cité] e “Acquérir, perdre le droit de cité” [Adquirir, perder o droit de cité].
O conjunto de modificações desta edição produz uma tensão polissêmica no sentido político de cité, seja pela ambigüidade entre o passado greco-romano e o presente francês, seja pela predicação do droit de cité como não universal (não são todos que o possuem) e transitório (pode-se perdê-lo ou ganhá-lo), contrariando os ideais da Revolução em curso. As modificações parecem refletir as tensões e incertezas da própria Revolução, que se submetia, então, a um período monárquico.
No núcleo urbano da definição, que antecede o político, o comentário de uso que acompanha a primeira acepção é reescrito: “Il ne s'emploie guère qu'en poésie et dans le style soutenu” [não se emprega mais senão na poesia e no estilo formal]. Entre a primeira e a segunda acepção, a expressão cité celeste é acrescentada, rememorando a relação com o livro de Santo Agostinho, sem citá-la. Cité é deslocada para um outro plano, que não o terrestre.
A segunda acepção é reescrita; a expressão “igreja episcopal” é substituída por “Igreja catedral ou principal”: “Cité désigne, dans quelques villes, la partie la plus ancienne de la ville, et où se trouve l'église cathédrale ou principale” [Cité designa, em algumas villes, a parte mais antiga da ville, e onde se encontra a igreja catedral ou principal]. A mudança sinaliza o fim das Villes episcopais francesas medievais, nas quais o bispo era o ator político-religioso mais importante. Esta direção de mudança é reforçada pela alteração do presente para o passado no exemplo “On divisait autrefois Paris en Ville, Cité, et Université” [Dividia-se antes Paris em Ville, cité e Universidade]e pela supressão da terceira acepção, que estendia a presença da igreja às villes ditas “não episcopais”.  
Na sétima edição, de 1878, são feitas duas alterações: uma no núcleo político e outra o urbano. Na acepção política: “se dit en outre d'Une ville ou d'un territoire gouverné par des lois particulières” [diz-se além disso de uma ville ou território governado por leis particulares], a expressão nominal “uma região ou porção de território cujos habitantes se governam por leis particulares” torna-se “uma ville ou território governado por leis particulares”. Com esta modificação, ville reaparece no sentido político de cité.
No núcleo urbano, é acrescentada a expressão cités ouvrières, cujo espaço não é especificado em relação ao da ville3: “nom donné à des bâtiments, plus ou moins vastes, renfermant un certain nombre de logements destinés à des familles d'ouvriers”[Nome dado a edifícios, mais ou menos vastos, encerrando um certo número de alojamentos destinados a famílias de operários]. Esta nova expressão não rememora mais a relação com o religioso, mas com a sociedade industrial, da qual faz significar a divisão do espaço na sociedade de classes, pela rememoração do agrupamento das moradias dos operários e a sua conseqüente separação das famílias não-operárias.   

Ville no Dicionário da Academia Francesa
Se no Thresor bilíngüe de Jean Nicot a palavra ville é predicada pelo sinônimo cité ao passo que cité não remete a ville, no monolíngüe de Richelet e no Dicionário da Academia Francesa, a direção se inverte: a definição de ville não menciona cité, embora a definição de cité seja construída sobre a ligação com ville. Esses modos de enunciação da definição apontam para o caráter dissimétrico da relação de sinonímia, por um lado, e, por outro, para a anterioridade na estabilização dos sentidos de ville em relação aos de cité, o que é corroborado pelo número de composições (grupos nominais, provérbios, expressões idiomáticas) presentes no artigo ville desde a primeira edição, indicando que a palavra tem, já no final do século XVII, uma forte presença na enunciação da sociedade francesa.
Em 1694, assim como na definição de Richelet, a acepção predica ville pela arquitetura: “Assemblage de plusieurs maisons disposées par ruës & fermées d'une closture commune qui est ordinairement de murs & de fossez” [Conjunto de várias casas dispostas em ruas e fechadas por um entorno comum que é ordinariamente de muros e de fossas]. Note-se que embora se aproxime primeira acepção de cité entre a primeira e a sétima edições do Dicionário, que estabelece a sinonímia com ville, ela não remete a cité.
A primeira acepção é ilustrada por uma grande quantidade de elementos que sinalizam contextos enunciativos da palavra-entrada. Primeiro, um conjunto de expressões nominais compostas por ville e uma forma adjetiva; neste bloco, ville é predicada pelo tamanho, a qualidade, a arquitetura, a atividade econômica, a localização geográfica, a situação sócio-política, a riqueza, o povoamento: Grande ville, bonne ville. petite ville. ville murée, close de murailles, ville fermée. ville ouverte. ville demantelée. ville capitale, episcopale, metropolitaine. ville maritime. ville frontiere. ville forte. ville de guerre. ville de commerce. ville marchande. ville de grand passage. ville riche. ville franche. ville fort peuplée. ville deserte. [Grande ville, boa ville, pequena ville, ville murada, fechada por muralhas, ville fechada, ville aberta, ville desmantelada, ville capital, episcopal, metropolitana, ville marítima,ville fronteira, ville forte. Ville de guerra. Ville de comércio. Ville mercante. Ville de grande passagem. Ville rica. Ville franca. Ville muito povoada. Ville deserta.]
Em seguida, um enunciado com uma seqüência de verbos que significam ações de conquista e defesa da ville:“fortifier, assieger, deffendre, prendre une ville. [fortificar, cercar, defender, tomar uma ville], acompanhados de frases que colocam em cena o governador, o rei, os oficiais e o escritório da cidade: “le gouverneur a porté les clefs de la ville au Roy. les soldats entrerent par escalade dans la place, & crierent ville gagnée. officiers de ville. hostel de ville.” [o governador levou as chaves da ville para o rei. Os soldados entraram escalando na praça, e gritaram ville ganha. oficiais [officiers4] da ville. Escritório da ville].
Um terceiro bloco composto de expressões nominais e frases enuncia partes da ville, movimentos pela ville, e o pertencimento à ville (de um rumor, de uma criança): “la ville & les faux-bourgs de Paris. la haute & basse ville. la ville neuve. la vieille ville. aller par la ville. il est en ville. on luy a donné la ville pour prison. il est allé faire un tour de ville, en ville. j'ay fait les quatre coings & le milieu de la ville pour vous chercher. il demeure au coeur de la ville, à l'autre bout de la ville. c'est un bruit de ville. il court un bruit par la ville. c'est un enfant de la ville. [a ville e os subúrbios de Paris. A alta e a baixa ville. A ville nova. a ville velha. Ir à ville. Ele está na ville. Foi-lhe dada a ville como prisão. Ele foi fazer um passeio pela ville, na ville. Eu fiz os quatro cantos e o meio da ville para procurá-lo. Ele fica no coração da ville, na outra ponta da ville. É um rumor de ville. Corre um rumor pela ville. É uma criança da ville.]
Duas expressões idiomáticas e um provérbio encerram o verbete: “On dit communément, que La ville est bonne, pour dire, qu'On y trouve tout ce dont on a besoin.” [Diz-se comumente que a ville é boa para dizer que se encontra nela tudo de que se precisa]. A ville é, então, lugar que supre as necessidades. A segunda rememora um hábito citadino: o de comer fora de casa – “en ville”: “On dit, qu'Un homme est allé disner, souper en ville, pour dire, Hors de chez luy.” [Diz-se que um homem foi jantar, cear na ville para dizer fora de casa]. No provérbio, a ville toma forma de sujeito seduzido pela palavra, e que a ela se rende: “On dit fig. & prov. Ville qui parlemente est à demy renduë, pour dire, qu'Une personne qui se laisse cajoler, qui escoute les propositions qu'on luy fait, ne s'esloigne pas d'accorder ce qu'on luy demande.” [Diz-se fig. e prov. Ville que parlamenta está meio rendida, para dizer que uma pessoa que se deixa mimar, que escuta as propostas que lhe são feitas, não se distancia de acordar o que se pede a ela].
Em 1718, o artigo recebe o acréscimo de duas acepções. A primeira das três permanece a de 1694. Nesta, algumas alterações são feitas nos contextos enunciativos da palavra-entrada. A primeira é o acréscimo de três novos verbos no enunciado de exemplos de conquista e defesa, que agora reúnem também o sentido de construção e destruição: “bastir, destruire, raser” [edificar, destruir, arrasar]. A segunda é o acréscimo de uma expressão idiomática: “On dit, qu'Un homme a une partie de son bien sur la ville, pour dire, qu'il a une partie de son bien en rente sur l'Hostel de Ville de Paris.” [Diz-se que um homem tem uma parte de seus bens na ville, para dizer que ele tem uma parte de seus bens no escritório da ville [Hostel de ville5] em Paris].
Nas duas novas acepções, ville é definida pelos sujeitos que dela tomam parte: o seu corpo de oficiais [officiers] ou os seus habitantes.  A primeira acepção: “Il se prend aussi pour le Corps des Officiers de Ville.” [Toma-se também pelo corpo de oficiais da ville], vem articulada ao exemplo “La Ville est venuë haranguer.” [ A ville veio arengar]. A segunda nova acepção: “Ville Se prend aussi pour les habitants.” [Ville se toma também pelos seus habitantes], vem seguida de dois exemplos: “Toute la Ville est allée au devant de luy. toute la Ville parle de cette nouvelle.” [Toda a ville foi diante dele, toda a ville fala desta novidade.].
No conjunto de acepções que compõem o verbete na segunda edição do Dicionário da Academia, ville é definida tanto pela sua forma arquitetural, como pelos sujeitos que dela fazem parte: os habitantes como um todo, de um lado, e os oficiais [officiers], de outro. Elas permanecerão em todas as edições analisadas, um acréscimo sendo feito na primeira edição do século XIX. As outras edições do século XVIII realizam poucas modificações. Além da alteração na ordem de alguns elementos e de pequenas reformulações formais nos enunciados, há acréscimo ou supressão de expressões e exemplos. Nos deteremos nos acréscimos, já que as supressões estão relacionadas, no mais das vezes, a elementos repetidos.
Ilustraremos o conjunto das modificações pelo artigo de 1740. A acepção que enuncia ville por seus oficiais é posta antes da expressão “un homme a une partie de son bien sur la ville”; no bloco de expressões nominais que segue a primeira acepção, é suprimido o adjetivo “metropolitaine” [metropolitana]. Em uma das expressões idiomáticas presentes já em 1694, o advérbio “aisement” [facilmente] é acrescentado: “On dit communément, que La ville est bonne, pour dire, qu'On y trouve aisement tout ce dont on a besoin.” [Diz-se comumente que a ville é boa para dizer que se encontra nela facilmente tudo de que se precisa.].
A expressão idiomática acrescentada em 1718, por sua vez, é ampliada para abarcar a diferença no emprego proposicional entre à la ville (em oposição ao estar no campo) e en ville (em oposição ao estar em casa): “On dit, qu'Un homme est à la Ville, pour dire, qu'Il n'est point à la campagne; Et, qu'Il est en Ville, pour dire, qu'Il n'est pas actuellement chez lui. Dans ce dernier sens, on dit, qu'Un homme est allé dîner, souper en ville, pour dire, Hors de chez lui. Il est du style familier.” [Diz-se que um homem está à la ville para dizer que ela não está no campo; e que ele está en ville para dizer que ele não está atualmente em casa. Nesse último sentido, se diz que um homem foi jantar, cear en ville para dizer fora de casa. É do estilo familiar].
Em 1762, ao final do artigo, é acrescentada uma nova expressão idiomática – “avoir ville gagnée” [ter ville conquistada] “On dit figur. De toute difficulté vaincue, surmontée, Avoir ville gagnée.” [Se diz figurativamente de toda dificuldade vencida, superada, ter ville conquistada]. Em 1798, “la maison de ville” [a casa municipal] e “bruit de ville” [barulho, rumor de ville] são acrescentadas ao bloco de expressões nominais que segue a primeira acepção. À acepção metonímica que toma a ville pelos seus habitantes, são acrescentados os exemplos “Il avoit chez lui la ville et les Faubourgs. Il reçoit, il traite toute la ville.” [Ele tinha em sua casa a ville e os subúrbios. Ele recebe, ele trata toda a ville.]
Na sexta edição, de 1832-5, a primeira do século XIX, várias reformulações formais são feitas. Destas, destacamos aquelas que dizem respeito à forma da sentença universal da lexicografia moderna mais recente: marcas comuns nas edições anteriores, como “diz-se”, que colocam em cena um sujeito falante como locutor da palavra a definir, são suprimidas. Destacamos, ainda, uma reformulação que não é apenas formal: na primeira acepção, “plusieurs maisons” [várias casas] é substituída por “un grand nombre de maisons” [um grande número de casas] e “fermées d’une clôture commune” [fechadas por um entorno comum] por “et souvent entourées d’une clôture comune” [e freqüentemente rodeadas por um entorno comum]. A acepção fica então: “assemblage d’un grand nombre de maisons disposées par rues, ET souvent entourées d’une clôture commune, qui est ordinairement de murs et de fosses” [conjunto de um grande número de casas dispostas em ruas, e freqüentemente rodeadas por um entorno comum].  Na reformulação, a quantidade (própria das cidades) é enfatizada e a presença do entorno, próprio das cidades medievais na França, é relativizada.  
Outras alterações são significativas: a primeira é a separação da expressão “hotel de ville” do bloco de grupos nominais. Ela recebe uma acepção, o que dá destaque à administração da ville e aponta para a institucionalização das municipalidades: “L'hôtel de ville, la maison de ville, L'hôtel, la maison où se réunit habituellement le conseil municipal.” [A casa municipal [hôtel, maison de ville], o hotel, a casa onde se reúne habitualmente o conselho municipal]. A segunda é o acréscimo da expressão Sergent de ville (um tipo de officier da municipalidade), que reforça o sentido administrativo.  
Outro acréscimo traz uma distinção no sentido de uma expressão, a partir de mudança na sintaxe, segundo o locutor seja o rei ou a sociedade: o rei diz “boa ville”; a sociedade, “a ville é boa”: “Bonne ville. Qualification honorable accordée par nos rois à certaines villes plus ou moins considérables.” [Boa ville. Qualificação honrosa acordada por nossos reis a certas villes mais ou menos consideráveis] e “Communément, La ville est bonne, On y trouve aisément tout ce dont on a besoin.” [Comumente, a ville é boa, se encontra nela facilmente tudo de que se necessita].
O último acréscimo é uma nova acepção, que reafirma a oposição ao campo e o modo de vida próprio das villes: “Ville se dit encore, absolument, Du séjour des villes, de la vie qu'on y mène, et des moeurs qui y règnent; par opposition Au séjour, à la vie et aux moeurs de la campagne.” [Ville se diz ainda, absolutamente, da estada nas villes, da vida que se leva lá, e dos costumes que lá reinam; por oposição à  estada, à vida e aos costumes do campo.” Ela vem articulada a dois exemplos que enunciam a alternância na preferência entre cidade e campo: “J'aime mieux la ville que les champs.” [Eu gosto mais da ville que do campo] e “Il préfère la campagne à la ville” [Ele prefere o campo à ville].
Em 1878, na última edição do século XIX, a única alteração em relação à edição anterior é o acréscimo de duas expressões. A primeira rememora Roma como cidade eterna: “la ville éternelle, se dit poétiquement de la ville de Rome” [a ville eterna, se diz poeticamente da ville de Roma]. A segunda rememora roupas do costume citadino: as vestimentas de visita, ditas de ville: “Habit, toilette de ville, Habit, toilette qu'on prend pour faire des visites” [Roupa, vestimenta de ville, Roupa, vestimenta que se usa para fazer visitas].

Cidade, ville, cité: particularidades
O artigo cidade do Morais traz duas acepções na primeira edição, que se mantêm até a sétima, acrescidas de uma terceira, em 1831. A primeira distingue cidade de vila, a segunda a enuncia como lugar onde estão os que falam, e a terceira, como “os homens que a compõem e habitam”. Temos, assim, um memorável urbano administrativo do presente português, e um memorável político que parece remeter antes à latinidade, além de uma acepção metonímica que pode ser interpretada tanto em um discurso urbano como em um discurso político. A ela são acrescentados exemplos que diferenciam a gente da cidade, a da vila e a da corte, colocando esta última em oposição às outras duas, de um lado, e, de outro, colocando a gente da cidade em paralelo à gente da corte. É a este grupo de exemplos que vem se juntar, em 1858, a oposição à gente do campo. E é a esta acepção que se junta, em 1889-91, o enunciado “a cidade revolucionou-se”, ao mesmo tempo em que a acepção política que remete à latinidade é suprimida.
Cidade passa no período analisado por uma instabilidade no sentido político indicada no anacronismo da acepção política e na irrupção lateral (nos exemplos) de elementos que dividem as gentes da sociedade. Esta instabilidade culmina com a supressão da acepção política e o acréscimo simultâneo de um memorável revolucionário que não é localizado no tempo e no espaço. O sentido político de cidade fica em suspenso, ao mesmo tempo em que o sentido urbano fica restrito à divisão das unidades administrativas, ou à presença dos habitantes. Não há, como vimos em ville, a enunciação de um modo de estar e viver na cidade. É o século XX que definirá os rumos dos sentidos político e urbano de cidade.
No artigo cité, chama a atenção já no primeiro momento que embora a palavra tenha uma relação morfológica com civitas, relação esta que determina o seu imaginário semântico moderno, ela entra nos monolíngües de Richelet e da Academia predicada não por um sentido político, mas por sentidos urbanos, estabelecidos pela ligação com ville. O predomínio do sentido arquitetônico é ainda mais significativo quando este sentido traz, em algumas acepções, um elemento político da França medieval: a presença da Igreja nas villes episcopais; mas esta presença não é enunciada como política, e sim subsumida pelo predicado arquitetônico.
As acepções urbanas de cité vão sendo modificadas de modo a marcar como passado as villes episcopais medievais com as quais estes sentidos se ligam. E esta mudança se concretiza na sexta edição, após a introdução do sentido político da palavra na quinta edição, de 1798. Por outro lado, chama a atenção o fato de a sinonímia com ville estabelecida pelo predicado arquitetônico que não faz referência à Igreja se manter em todas as edições na primeira acepção, ainda que a partir da segunda um comentário de restrição seja acrescentado. Se a sinonímia tem restrição de uso, a cité como parte da ville se redivide e na última edição do século XIX, de 1878, ainda que sem explicitar a relação com ville, se desdobra em uma denominação do seu tempo: surgem as cités ouvrières, que remetem à sociedade capitalista industrial.
O sentido político, como vimos, é introduzido na quinta edição, e rememora a Revolução Francesa. A partir da sexta edição, a ambigüidade posta no jogo entre as acepções no presente e os exemplos que remetem à Antigüidade Greco-latina, e a predicação, também nos exemplos, do droit de cité como transitório e não-universal, parecem indicar as mudanças e incertezas do processo revolucionário em curso.
O que se observa no artigo ville é que desde a primeira edição do Dicionário da Academia há um sentido arquitetônico que rememora a quantidade das casas e o seu entorno, o qual se mantém na primeira acepção ao longo das sete edições analisadas. Diferentemente do que ocorre com cité, a primeira acepção de ville não recebe comentários de restrição de uso. Ela vem acompanhada, desde 1694, de um grande número de elementos contextualizadores, que a predicam por elementos tão diversos como a geografia, a economia, a política, os costumes, a administração, os lugares, os caminhos a percorrer. Além desses blocos de grupos nominais, verbais e frásticos, há um conjunto de expressões idiomáticas e provérbios que indicam, junto aos outros elementos, a forte presença da palavra na sociedade francesa.
Ao longo do tempo, três acepções são acrescentadas. As duas primeiras, de 1718, enunciam ville como metonímia dos seus habitantes e dos seus oficiais; a terceira, de 1878, enuncia ville como os costumes e o estar na ville, em oposição ao campo. Desde a primeira edição, são enunciados tipos de ville, ações políticas de conquista e proteção das villes, elementos de sua administração, mas, sobretudo, o que se destaca são os modos de estar na ville, os hábitos, os costumes que se opõem aos do campo e a disposição arquitetônica. Com o passar do tempo, redividem-se os elementos da administração e os costumes. Ville designa, no período analisado, um lugar diferenciado, pela arquitetura, pela administração, pelo poder político, mas, sobretudo, pelos costumes que nela se estabelecem.
Entre cité e ville, no período analisado, percebemos, de um lado, em ville, uma palavra estável, largamente enunciada na sociedade francesa, e cuja definição é independente de cité; de outro lado, em cité, uma palavra cuja definição se constrói pela ligação com ville, e cuja primeira acepção, que estabelece a sinonímia entre as duas palavras, permanece da segunda à sétima edição limitada por um comentário de restrição de uso. Afora a acepção sinonímica, cité significa o urbano como tipo, espaço ou conjunto arquitetônico da ville.
Em cité, o sentido político é introduzido depois do urbano, e sob a influência da Revolução Francesa. A partir da sexta edição, se põe uma ambigüidade de tempos entre a Antigüidade Greco-latina e o presente francês. Em ville, o sentido político, diferentemente de cité, aparece em memoráveis administrativos e de proteção e conquista das villes e se liga, quando o explicita, à monarquia. Não há memória da Revolução Francesa afetando o conjunto de habitantes, que não são, tampouco, denominados citoyens, como em cité. As mudanças sociais apontadas são indicadas na enunciação da arquitetura e da administração pública. Os sujeitos que compõem a ville e a cité nas acepções metonímicas são interpelados diferentemente: em ville, como os oficiais e os habitantes; em cité, como os cidadãos de um Estado livre.
Se ville é determinada pelo sentido urbano e é nele que o político-administrativo e o social se inscrevem, cité passa a ter um outro sentido quando designa o corpo político, o qual pode pertencer a uma ville, a um país, a um Estado livre, ou a um território não especificado.
Cidade, na enunciação do Morais, surge dividida entre o sentido urbano e o político. Nesta divisão, uma disparidade de tempos inscreve a acepção urbano-administrativa no presente português e a acepção política em uma relação com a civitas latina. O movimento ao longo das edições analisadas se dá sobretudo em torno da inclusão de uma terceira acepção, que enuncia cidade como os homens que a compõem e habitam. É por meio dela que cidade, antes de se opor a campo, se une a vila e se opõe a corte, na referência às gentes de cada lugar.
O sentido urbano de cidade não se movimenta na direção do presente, como em ville. Não há contextos de emprego ou a enunciação de um modo de viver e circular na cidade. Não há tampouco a divisão em partes da cidade, como ocorre em cité pela ligação com ville. Nem há memorável religioso. Por sua vez, o sentido político muda; o processo de mudança também ocorre diferentemente do processo de cité, que se dá nas acepções e nos exemplos. O processo de mudança em cidade é observado no início apenas lateralmente, nos exemplos, até a supressão da acepção política, no final do século XIX. Esta acepção traz um memorável da latinidade, enquanto os exemplos acrescentados à outra acepção, metonímica, e o enunciado “a cidade revolucionou-se” remetem implicitamente à Revolução Francesa.
O que se nota, em relação aos dicionários bilíngües que precederam a lexicografia monolíngüe, tanto na França como no Brasil, é que a memória da latinidade tal como posta nos bilíngües é ressignificada já nos primeiros monolíngües. Cité não entra no francês pela relação com civitas; e ville não se põe em relação a cité ou civitas. Cidade, por sua vez, passa de um sentido urbano sócio-arquitetônico para o administrativo, e traz uma memória política que pode ser associada à civitas de lugar onde estão os que falam que o dicionário português e latino não enuncia.
Ao longo do tempo, a acepção política que traz o memorável da latinidade em cidade é suprimida sem ser substituída por outra acepção política. Este movimento se dá em proveito da introdução lateral de sentidos que podem ser associados à Revolução Francesa. Em cité, por outro lado, a Antigüidade Greco-romana é posta como rememorado depois que o sentido político ligado à Revolução Francesa está inscrito, gerando uma ambigüidade de tempos.
Em ville, a urbanidade significa a oposição ao campo, como na urbs latina; em cidade, este sentido aparece mais tarde, depois de um conjunto de diferenças entre as “gentes” da sociedade inscritas no tecido urbano. Uma diferença no tecido urbano aparecerá em cité apenas no final do século XIX, com a menção às cités ouvrières.
Há, portanto, um trabalho contínuo sobre a memória urbana e política, esteja ela ligada à latinidade ou a outras regiões de sentido, que deixa ver a particularidade da história dessas palavras e do modo como significam ou designam os objetos que nomeiam. Este trabalho contínuo, nas três palavras, mas em especial em cité e cidade, longe de dar visibilidade a uma estabilidade entre o urbano e político, aponta constantemente, sob diferentes modos, para uma instabilidade no interior de cada um dos dois sentidos e para uma relação de forças entre eles.

 

Notas

1 Agradeço ao convênio Capes/COFECUB pela bolsa para a pesquisa de pós-doutorado desenvolvida no Laboratório Triangle da ENS-LSH de Lyon no quadro do Projeto “O controle político da representação: uma história das idéias” em 2008. Este artigo é um dos resultados deste trabalho.

2 Consideramos a designação de cidade referida ao modo de organização humano. Por isso, acepções novas (incluídas em 1877 e 1889-91) que referem a uma espécie de rapé ou de formigueiro não são tomadas em conta nas análises, ainda que elas mostrem a divisão homonímica da palavra.

3 Para uma análise mais detalhada do artigo cité e da ligação com ville no Dicionário da Academia, incluindo as edições do século XX, ver Elias de Oliveira (2009).

4 Há uma ambigüidade na interpretação de officier. Na primeira edição do Dicionário da Academia, a acepção do substantivo diz respeito a um religioso: “Il se dit plus particulièrement De celui qui célèbre une Grand'Messe, ou qui préside à l'Office Divin”. [Diz-se mais particularmente daquele que celebra uma missa, ou que preside o ofício divino. Mas se buscamos a quarta edição, encontramos uma acepção já presente no Trésor de Nicot: “Qui a un Office, une Charge” [aquele que tem um ofício, um posto]. É articulado a ela que o Dicionário da Academia traz, entre outras, a expressão composta “officier de ville”.

5 Atualmente, hôtel de ville é traduzido por vezes como prefeitura, referida às grandes cidades. Optamos por “Escritório da ville” para não sobrepor uma tradução mais recente. A partir da quinta edição, quando aparece em ville a expressão “Maison de ville”, já consta, desde 1798, o verbete “municipalidade”. Optamos, então, por “casa municipal”. Eis a definição da primeira edição do Dicionário da Academia: “On appelle, Hostel de Ville, La maison publique où l'on s'assemble d'ordinaire pour les affaires de la ville” [Chama-se hostel de ville a casa pública onde se reúne ordinariamente para as questões da cidade].

Referências Bibliográficas

ELIAS DE OLIVEIRA, S. Cidadania: história e política de uma palavra. Campinas: Pontes/RG, 2006.
___________. “Um estudo sobre a cité”. In: Caderno de Estudos Lingüísticos. Campinas, n° 151(1), jan/jun. 2009, p.95-106.
GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento. Campinas: Pontes, 2002.
____________. “Domínio semântico de determinação. In: Guimarães, E. e MOLLICA, M.C. A palavra: forma e sentido. Campinas: Pontes/RG, 2007, p.79-96.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2000.

Palavras-chave: definição lexicográfica, memória, designação
Key-words: lexicographic definition, memory, designation

 

>> Volta