REFLEXÕES ACERCA DO FUNCIONAMENTO DAS NOÇÕES DE LÍNGUA E DE SUJEITO NO DICIONÁRIO DE REGIONALISMOS DO RIO GRANDE DO SUL 1

Verli Petri
Laboratório Corpus e PPG Letras/UFSM

RESUMO: Este artigo traz uma análise do processo de dicionarização dos termos regionalistas “linguagem gauchesca” e “poesia gauchesca” no Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul. Tomado como objeto discursivo, o dicionário permite observar o funcionamento da noção de língua em suas relações com as formas de identificação do sujeito gaúcho.

ABSTRACT: This article brings an analysis of the process of dictionarization of the regionalistic terms “linguagem gauchesca” (gaúcho’s language) and “poesia gauchesca” (gaúcho’s poetry) in the Dictionary of Regionalisms of Rio Grande do Sul. Taken as a discursive object, the dictionary allows the observation of the functioning of the notion of language in relation to the forms of identification of the “gaúcho” (one coming from the state of Rio Grande do Sul, in the south of Brazil).

pensar o nome da língua é tomar em conta a história do saber produzido sobre ela, é conhecer a história da própria língua em sua prática e funcionamento, é analisar as injunções da conjuntura política e social, é apreender a constituição de seu sujeito, dando mais um passo no saber da história das idéias no Brasil
(Orlandi, 2009, p. 193).

Introdução
As noções de língua e de sujeito têm sido bastante discutidas no âmbito da Análise de Discurso, revelando diferentes modos de abordagem e fazendo emergir as diferenças entre língua materna e língua nacional, língua estrangeira e segunda língua; língua imaginária e língua fluida, vinculadas ou não aos pares sujeito-autor e sujeito-leitor, sujeito e sujeito falante da língua, sujeito que se identifica e que não se identifica, para citar algumas. É na esteira destas reflexões que inscrevemos nossa investigação, colocando em relação o regionalismo e a língua nacional, bem como o sujeito que toma posição no interior desta língua. Trata-se de uma reflexão que traz à baila o funcionamento das noções de língua e de sujeito no processo de dicionarização de termos regionalistas do/no Rio Grande do Sul, revelando elementos de um espaço simbólico e territorialmente marcado pela diferença.
Abordar essa língua dicionarizada, especificamente a partir de termos regionalistas, é abordar formas de recuperação de uma memória coletiva e é também observar o funcionamento de uma ferramenta própria à manutenção de uma cultura bem local, mas é, sobretudo, adentrar o espaço das questões historicamente construídas. De um lado, o simbólico surgimento do gaúcho na figura do mito do “centauro dos pampas”; de outro lado, um imaginário coletivo povoado por guerras e revoluções, demarcando territórios físicos e lingüísticos. E falar em história implica falar em memória, considerada, em nossa abordagem, como espaço móvel pleno de saturações e esquecimentos; mas, sobretudo, como espaço de invenção, manutenção e transformação do mito. Isso pode ser notado no caso específico do mito do gaúcho, marcado pela inconstância e pela movência, o que pode ser observado histórica e geograficamente, mas também quando se trata de fronteiras simbólicas. E é pelo movimento observável no discurso que podemos tomar como objeto de análise as possibilidades de funcionamento das noções de língua e de sujeito no dicionário de regionalismos.
De fato, observamos que a produção cultural, artística e literária de cunho regionalista riograndense do sul é marcada pela presença constante do mito (Petri, 2004), revelando imagens de sujeito, via linguagem regionalista. Isso nos remete também à especificidade lexical, como algo próprio da área rural/pastoril e marcado pela oralidade, muito mais próximo da representação de uma “língua fluida” do que de uma “língua imaginária” (Orlandi, 2009, p. 18). De toda a profícua discussão acerca destas duas noções, resumidamente estamos entendendo a língua imaginária como aquela que está sistematizada, impregnada no imaginário do sujeito que se relaciona com ela; é aquela que está no dicionário, estável em suas unidades e variações. Já a língua fluida é plena em movimentos, indomável nas formas e na produção de sentidos, está viva e é afetada pela ideologia e pelo inconsciente, inapreensível enquanto totalidade.
A questão primeira que move nossas reflexões, neste artigo, está vinculada ao processo de nomeação, concebido como algo que dá existência histórica ao objeto, distinguindo-o dos demais (Guimarães, 2003, p. 9). Na verdade, a primeira pergunta que se coloca é: podemos dizer que há uma língua regional do sul do Brasil? Para responder a esta questão é preciso considerar que há um sujeito que é nomeado gaúcho e que é definido como aquele que “nasce no” ou “habita o” estado do Rio Grande do Sul; bem como é preciso considerar que existem modos de identificação constitutivos da fala deste gaúcho, sejam eles de ordem lexical, fonética, sintática; sejam eles de ordem semântica; pois ampliam-se, neste espaço, os modos de ressonância dos processos de produção de sentidos. Assim, tomamos a noção de sujeito atrelada à de falante e “os falantes são estas pessoas enquanto determinadas pelas línguas que falam (...) São sujeitos da língua enquanto constituídos por este espaço de línguas e falantes” (Guimarães, 2003, p. 10).
Posto isso, passamos a especular as possíveis respostas à nossa pergunta. O fato que se impõe é que antes de podermos nomear a língua como “língua gaúcha” ou “língua dos gaúchos”, precisamos levar em conta as relações entre língua e nação. Há todo um imaginário social e histórico que nos dá a conhecer a língua do e no Brasil, a língua nacional e oficial, a língua portuguesa, considerando que ela “está estruturalmente ligada à constituição da forma histórica do sujeito sociopolítico, que se define assim na relação com a formação do país, da nação, do Estado” (Orlandi, 2002, p. 21). É assim que se explicita o contraponto de se ter línguas no interior de uma língua, são línguas que promovem a heterogeneidade no interior de uma língua com o suposto “poder” de homogeneização, servindo à administração do Estado, mas, também à necessidade de administração dos saberes (como é o caso das escolhas do que se ensina e do que não se ensina, por exemplo).
O dicionarista Batista Bossle2, por exemplo, não hesita em utilizar a expressão “língua dos gaúchos”, apresentando e definindo assim sua obra: “Este é o mais consistente dicionário popular dedicado à “língua dos gaúchos” já produzido (...)”. Mas, antes de nomear a língua, o autor classifica sua obra como um “dicionário popular”, produzido no final do século XX. Nossa entrada se dá por este nicho, pois nos remete à definição cunhada por Horta Nunes (2006)3 para os dicionários do povo que são: “dicionários populares dos anos 1980 que se opõem aos dicionários gerais: são dicionários parciais que propõem descrever a língua dos sujeitos rurais ou regionais, uma linguagem "rústica" e "original", diferenciada da língua erudita.” Nos propomos a estender o funcionamento deste período até o final do século XX e então incluímos a obra supra-citada, passando a considerar que a expressão “língua dos gaúchos”, apresentada entre aspas, funciona muito mais como um artifício utilizado pelo autor para caracterizar vivamente o Dicionário Gaúcho Brasileiro (este é o título da obra); do que para nomear, de fato, uma língua. Enfim, ao determinar que o dicionário é popular, Bossle (2003) sinaliza, ao leitor mais atento, de que se trata de algo parcial e não recobre uma “língua” em sua plenitude; e o processo de nomeação funciona para dar singularidade e marcar o próprio da escritura regionalista.
O exemplo acima reforça a idéia do necessário deslocamento do ponto nodal desta reflexão, já que como nos diz Sériot (2001, p. 17): “discutir o nome de uma língua é o mesmo que discutir o nome de uma nação”. Mas no caso de nossa análise não se trata exatamente disso, como veremos no desenvolvimento do texto, já que não é tão é simples refletir sobre língua e sujeito no processo de dicionarização no espaço de um regionalismo “exacerbado”4, como o é no Rio Grande do Sul, pois o trabalho da ideologia se sobressai marcando cada escolha, cada nome, cada definição.

Língua, sujeito e história
Há pelo menos três anos vimos estudando diferentes aspectos constitutivos de um dicionário de regionalismos, publicado nos anos 80 (século XX), o qual já alcançou um estatuto bem particular junto à comunidade que tem interesse nas temáticas regionalistas. Para esta reflexão elegemos o verbete “linguagem gauchesca”, lugar de constituição de uma noção de língua imbricada à noção de sujeito. E é no movimento de que verbete puxa verbete, palavra puxa palavra e sentidos puxam sentidos que nos detemos também no verbete “poesia gauchesca”, que aparece ao final da definição do primeiro verbete, como sugestão ao leitor. Interessa-nos preservar as especificidades lingüisticamente constituídas, garantindo-lhes o lugar de e na língua portuguesa do Brasil, tendo em vista que nos interessa explorar a forma como a nomeia este outro dicionário popular.
Na verdade, os dicionários mencionados5 nos conduzem a observar que essa linguagem regionalista do sul do Brasil também passa pelo processo de tecnologização, através do qual são produzidos instrumentos lingüísticos especialmente concebidos como espaço de manutenção, colocando em funcionamento um imaginário de língua regional. Talvez mais do que isso, pois nos dá a conhecer uma forma de memória oral e popular por um trabalho de escritura, o que contribui para a historicização das idéias lingüísticas do sul do país. É pelo processo de “gramatização” (noção discutida por Auroux, 1992), e, mais especificamente, via dicionarização, que as gerações futuras, advindas desse grupo social e de outras culturas têm acesso aos traços específicos da região sul da América Latina, fundada nos tempos da colonização e mesmo antes dela, período em que se instituíram diferentes imagens de gaúcho. Trata-se da manutenção de saberes, da manutenção de uma história (na qual ficção e realidade se misturam, pelo trabalho da invenção), da manutenção de uma identidade dita como “gaúcha”, via especificidade linguística, cultural e literária. Por isso, consideramos de grande importância a mobilização da noção de imaginário e imagens de sujeito e, sobretudo, de língua imaginária, pois é dessa ordem a idéia de que o dicionário, produzido em pleno século XX (embora resgate textos do século XIX), possa dar conta de toda uma língua e uma cultura que tem, pelo menos 500 anos. Da mesma forma que neste imaginário seria possível revelar a imagem de um sujeito herói, bem como seria possível “conter” os processos de produção de sentidos que se movimentam incessantemente com e sem o dicionário. É instigante refletir acerca do funcionamento desta ilusão constitutiva, da ilusão de que este livro – o dicionário – m seja um depositário da língua e da cultura gaúcha, e por extensão brasileira; esta ilusão remete o leitor à possibilidade de completude da língua e da possibilidade de domínio do sujeito sobre ela e sobre os sentidos que pode/deve produzir.
É esta idéia de dicionário como depositário de uma língua regional, como espaço materialmente constituído, capaz de alcançar ideais de manutenção de imagens de um sujeito, bem como da língua\cultura\tradição de um grupo social que nos permite pensá-lo e defini-lo como “tesouro de um falar comum”, ainda que represente a tecnologização da língua e que funcione como instrumento lingüístico. Então, se ele compila elementos de um falar comum, a sua constituição não nos remete, necessariamente, às relações entre língua e nação, por isso mesmo é que podemos dispor de tantos dicionários específicos6: eles não funcionam no mesmo âmbito nem da mesma maneira que os dicionários bilíngües e monolíngües. Assim sendo, os verbetes que estão no dicionário regionalista podem ser ou não contemplados pelo dicionário nacional, já que a língua é portuguesa no e do Brasil, plena em especificidades de várias ordens, dentre as quais estão os regionalismos.
É fato, também, que é pela instrumentalização dessa linguagem regionalista que se torna viável, em muitos casos, a leitura de textos artísticos-literários produzidos sob o rótulo de “gauchescos”, pois é pelo funcionamento desta tecnologia que se dá o efeito ilusório de contensão do processo de produção de sentidos, a partir do qual o sujeito acredita estar compreendendo o que lê. Em épocas remotas (e até hoje em certas culturas), os povos repassavam traços da língua e da cultura pela oralidade; mas, e hoje, como se daria a conhecer esta “língua”, esta cultura regional e as imagens deste gaúcho que também é brasileiro? Temos as canções, os causos, os mitos, as histórias, que, via literatura e via dicionário, apresentam uma parcela desta história que faz do Rio Grande do Sul parte do Brasil que se conhece (desconhece e reconhece) hoje.
É sob tais condições de produção que analisamos o Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul, de Zeno Cardoso Nunes e Rui Cardoso Nunes, publicado em 1984 (atualmente na 11ª edição), como um objeto discursivo, por nós estudado nos últimos anos. Para este trabalho nos detemos especialmente em dois verbetes: “linguagem gauchesca” e “poesia gauchesca”, nos quais é possível observar o funcionamento da noção de língua em suas relações com as formas de identificação do sujeito gaúcho com a língua que acredita ser “sua” e o território que acredita ser “seu”. Tais verbetes nos conduzem a refletir também sobre as relações entre língua e literatura; tendo em vista que o dicionário revela o movimento de idas e vindas entre uma e outra, apoiando-se essencialmente na produção literária, seja para tentar conter os processos de produção de sentidos, seja para instrumentalizar um leitor ainda jovem ou que desconheça a língua (gem) regionalista. Vejamos as definições que aparecem para cada um dos verbetes selecionados:

LINGUAGEM GAUCHESCA, s. Português falado pelos gaúchos da zona pastoril do Rio Grande do Sul, ao qual se agregaram elementos uruguaios, argentinos, paraguaios, guaranis, tupis, quíchuas, araucanos, áfricos e de várias procedências. (V. Poesia Gauchesca)
(Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul, p. 266).

POESIA GAUCHESCA, s. Modo de expressão literária peculiar aos poetas nativistas do Rio Grande do Sul. Esta denominação abrange todas as formas de poesia, as quais, no entanto, no trato de temas rio-grandenses, adquirem características especiais. É, também, chamada “poesia gaúcha”, “poesia nativista do Rio Grande do Sul” e “poesia crioula”.
(Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul, p. 381)

Do primeiro verbete, temos a destacar a presença do substantivo linguagem sendo determinado pelo adjetivo gauchesca, definido como o que é relativo ao gaúcho. A utilização de linguagem, numa concepção geral e abrangente, aqui tem, pelo menos, dois funcionamentos na produção dos sentidos:

a) ao dizer linguagem não se está dizendo nem língua (o que poderia remeter à nação, ao povo, bem como à gramática, à bandeira7), nem se está dizendo dialeto (o que se poderia remeter à variedade regional, parte de uma outra língua);
b) linguagem remete à comunicação, a vocabulário, embora possa remeter também ao que é próprio de um indivíduo ou de um grupo social, sobretudo se estiver na forma escrita.

Ao verbete, segue a definição que lhe é correspondente. Então, nos deparamos com a ausência da palavra língua, pois vamos ter “português falado” retomando “linguagem”, e “pelos gaúchos da zona pastoril do Rio Grande do Sul”, portanto remete a território marcado pelo determinante “gauchesca”. Mas este português falado, ao qual se refere o dicionário, é popular, é diferente da Língua Portuguesa em sua forma erudita, em suas normas cultas, ele não é “puro”, pois a ele “se agregaram [no passado] elementos uruguaios, argentinos, paraguaios, guaranis, tupis, quíchuas, araucanos, áfricos e de várias procedências.” Destacamos aqui a presença do verbo agregar, que traz em seu bojo, tanto o sentido de juntar-se, associar-se, reunir-se, quanto o sentido de “ser de fora”, não se trata, necessariamente, de uma apresentação de elementos constitutivos, mas, certamente, trata-se de algo determinante, capaz de fazer toda a diferença. Silencia-se a palavra língua, mas, ao mesmo tempo, não se menciona “variedade” ou “dialeto”, pois assim o silêncio constitui sentidos e deixa-nos perceber o funcionamento da ideologia no espaço entre o dizer e o não dizer, o nomear e o não nomear, o designar e o não designar.
Já o segundo verbete é sugerido ao final da definição de linguagem gauchesca, a fim de remeter o leitor a um outro lugar, o lugar da literatura regionalista, onde se revela a definição de modo de expressão peculiar aos poetas nativistas, eis o sujeito que produz literatura nessa linguagem: o poeta nativista, aquele ser telúrico, que supervaloriza o que é regional e que recusa a influência estranha, estrangeira, mas os elementos acima citados não funcionam como estrangeiros, eles já estão agregados à linguagem gauchesca. Trata-se de uma outra concepção de estrangeirismo, divergente ao senso comum, pois revela um funcionamento contraditório, já que a estranheza está “dentro”, é interior à língua e à nação; enquanto a semelhança e as relações identitárias saem “fora” disso. Os verbetes revelam que é mais fácil identificar-se com uruguaios, argentinos, paraguaios, guaranis, tupis, quíchuas, araucanos, áfricos, etc., do que com aquele brasileiro de outras regiões. E, colada à questão do que é ou não estrangeiro ao gaúcho, está presente, ainda que de modo velado, uma outra noção de fronteira, que é diferente daquela que nos remete às delimitações geopolíticas, porque, apesar das guerras e revoluções fronteiriças de que o Rio Grande do Sul foi cenário, as fronteiras simbólicas, imaginárias e lingüísticas não estão assim tão bem delimitadas, pelo menos para o analista. Há algo que é da ordem da língua e que escapa, que é da ordem do não apreensível, algo que flui livremente, o que nos lembra a metáfora de rio de Orlandi (2009, p. 18), “como um imenso rio, como um Xingu, que os olhos não abrangem, não seguram, não limitam. Fluida.”
Na mesma direção, temos a alusão ao nativo, ao homem da terra, ao indígena e ao nacional. Que nacionalismo é este? A poesia gauchesca abrange o todo, desde a poesia de salão até as composições mais populares, pois são “todas as formas de poesia, as quais, no entanto, no trato de temas rio-grandenses, adquirem características especiais.” Ao leitor, mais nenhuma explicação, ou seja, é preciso conhecer os temas rio-grandenses e as suas características especiais. Temos mais uma vez o silêncio em pleno funcionamento, sinalizando as fronteiras que excluem aqueles que não conhecem as tais “características especiais”. A eles a produção dos sentidos é, como para os demais, da ordem do já-dito, como uma evidência que está posta lá, em algum lugar da memória, no lugar onde ela esburaca-se. Ao nosso ver, esse silenciamento promove um outro modo de interdição (sutil, mas implacável), jogando para fora aquele que seria o “estranho” ou o “estrangeiro”, negando-lhe algumas possibilidades de produção de sentidos e, acreditando, com isso, estar preservando o que é peculiar à região e ao grupo social.
Na última parte do verbete aparecem as expressões sinonímicas: “poesia gaúcha”, “poesia nativista do Rio Grande do Sul” e “poesia crioula”. Normalmente falar em sinônimos já revela bastante complexidade, tendo em vista que o processo sinonímico é sempre incompleto e não recobre a totalidade do objeto de referência ou a gama de possibilidades de sentidos que uma palavra ou expressão pode trazer em seu bojo, mas quando se trata do discurso literário, isso se complica ainda mais. Uma primeira leitura sobre o verbete “poesia gauchesca”, presente em um dicionário regionalista, remete o leitor à definição e às possibilidades sinonímicas, mas isso não se dá de forma tão direta, conforme podemos observar.
Embora não seja nosso objetivo elencar aqui todas as possibilidades, vamos explorar um pouco cada uma das expressões mencionadas: poesia gaúcha nos remete para a generalização, tudo o que for produzido em território sul-riograndense é poesia gaúcha, independente das temáticas abordadas; poesia nativista do Rio Grande do Sul já nos remete para uma questão mais específica: primeiro porque nos remete ao “nativismo”8, movimento que envolve temáticas específicas, mas que revela uma preocupação maior com a qualidade literária, artística e existencial, quase sempre apresentando fundo social e, segundo, porque marca a relação com o estado da federação, filiando esta literatura e oficializando a produção artística. Uma coisa é certa: poesia nativista é muito diferente de poesia gauchesca, o que ainda é diferente da “poesia crioula”. Esta última nos interessa de modo especial, temos “crioula” determinando poesia, incidindo sobre ela novamente a produção do sentido sobre o nativismo, aquela que nasce, brota numa região e não em outra, num lugar e não em outro, etc. Mas o sentido fica saturado, de fato, quando pensamos em “crioula” como determinante de língua ou de linguagem, pois vai nos remeter a uma língua que carrega em seu bojo características de outras línguas, resultado do contato entre diferentes grupos sociais ou étnicos.

Considerações finais
Tais reflexões sobre os verbetes nos remetem, mais uma vez, a refletir sobre o funcionamento da noção de língua neste dicionário: uma língua que não é nomeada como Língua Portuguesa, mas também não é nomeada “língua dos gaúchos”. Talvez este silenciamento esteja ligado às condições histórico-ideológicas que, ao mesmo tempo em que estão presentes, são da ordem da interdição. Trata-se do histórico número de levantes de grupos radicais, do interior do Rio Grande do Sul, com adeptos em outros estados do Brasil e até de outros países do cone Sul, que empunham a bandeira do separatismo: movimento político-social que reúne sujeitos que lutam para separar parte do território nacional dos demais estados, buscando com isso fundar uma nação independente. Tais grupos representam uma minoria e são marcadamente influenciados e reconhecidos por uma ideologia neo-nazista, o que oprime e silencia manifestações mais fervorosas em defesa da língua, dita gaúcha, pois, muitas vezes, isso fica associado ao grupo separatista9, não havendo a desejada representatividade, já que compreendemos que “os processos históricos não são sempre diretamente visíveis na língua” (Orlandi, 2002, p. 24).
Enfim, este texto estava em elaboração quando assistimos à conferência do Prof. Patrick Sériot10, ocasião em que ele disse que “nomear é esconder a política”. Isso nos fez refletir acerca do objeto que estudamos e, hoje, nos propomos a pensar que, no caso desta língua\linguagem que não é nomeada, é possível dizer que o não nomear também pode ser um modo de esconder a política. E mais, a ideologia funciona mesmo, e sobretudo, quando parece não estar funcionando.
Concluindo, então, entendemos que a língua é portuguesa do Brasil, ela tem especificidades regionais e isso não é privilégio do Rio Grande do Sul, mas, certamente, o funcionamento desta noção, sob tais condições de produção, torna-se um diferencial num espaço em que língua está e não-está vinculada à nação, já que o nacionalismo que aqui se impõe é de outra ordem.

Notas

1 Uma primeira versão deste texto foi apresentada no II ENELIN, na UNIVAS, em Pouso Alegre-MG, em agosto de 2009.

2 Autor do “Dicionário Gaúcho Brasileiro”, publicado em 2003, pela Artes e Ofícios, de Porto Alegre, esgotado.

3 Disponível em http://gel.org.br/4publica-estudos-2006/sistema06/6.pdf Estudos Lingüísticos XXXV, p. 1028-1032, 2006.
[ 1032 / 1032 ], em 29 de agosto de 2009.

4 Este adjetivo faz alusão à presença dos movimentos radicais tradicionalistas e separatistas que circulam nos discursos sobre o gaúcho.

5 O Dicionário Gaúcho Brasileiro e o Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul.

6 Esta denominação abrange dicionários de artes, dicionários de ofícios, dicionários de termo técnicos da área de engenharia, dicionário de termos médicos, etc., dentre os quais também estão os dicionários de regionalismos.

7 É interessante lembrar que os revolucionários do século XIX que se diziam defensores da República do Sul carregavam uma bandeira diferente da bandeira brasileira.

8 Cf. festivais de música nativista no e do Rio Grande do Sul.

9 Importa destacar aqui que identificamos pelo menos dois movimentos sócio-históricos, apresentados pela mídia que não “separa” um separatismo do outro. Um deles reúne diferentes estados (RS, SC, PR e talvez SP), diferentes países (o Uruguai e parte da Argentina constituiriam a nova nação), diferentes etnias, credos, etc., tudo em prol do desenvolvimento social e econômico, pois é histórica a queixa, de que o sul trabalha para ajudar a manter o norte e o nordeste do Brasil. Já o outro movimento nos remete à colonização européia e, sobretudo, alemã, no sul do Brasil, pois com esta máscara separatista teríamos uma nova nação, com uma raça pura, que teria como língua oficial a língua alemã, um único credo, etc. e tal. Enfim, estes dois movimentos se misturam no discurso midiático e criam estereótipos, aos quais o grupo social não se identifica e, na maioria das vezes, o rechaça.

10 Conferência proferida na UFRGS, em Porto Alegre-RS, no dia 07 de agosto de 2009.

Referências Bibliográficas:

AUROUX, S. (1992) A revolução tecnológica da gramatização. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas, São Paulo: editora da UNICAMP.
GUIMARÃES, E. (2003) “A marca do nome”. Revista RUA, n° 9. Campinas, SP: Unicamp. p. 19-31.
ORLANDI, E. P. (2002) Língua e conhecimento lingüístico: para uma História das Idéias no Brasil. São Paulo: Cortez.
ORLANDI, E. P. (2009) Língua brasileira e outras histórias: discurso sobre língua e ensino no Brasil. Campinas: Editora RG.
PETRI, V. (2004) Imaginário sobre o gaúcho no discurso literário: da representação do mito em Contos Gauchescos, de João Simões Lopes Neto, à desmitificação em Porteira Fechada, de Cyro Martins. Tese de Doutorado em Letras. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul. 322 p.
SÉRIOT, P. (2001) “Ethnos e demos: a construção discursiva da identidade coletiva”. Revista RUA, n°. 7. Campinas, SP: Unicamp, p. 11-20.

Dicionários consultados:

BOSSLE, B. (2003) Dicionário Gaúcho Brasileiro. Porto Alegre: Artes e Ofícios.
NUNES, R. C.; NUNES, Z. C. (1984) Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul. 2. ed. Porto Alegre: Martins Livreiro.

Palavras-chave: dicionário, regionalismo, discurso
Key-words: dictionary, regionalism, discourse

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