LÍNGUA E NAÇÃO: UMA QUESTÃO E
SEU QUADRO DE REFERÊNCIA TEÓRICO

Eni P. Orlandi
Labeurb/IEL/Unicamp

 

RESUMO: Este artigo discute a formulação de alguns dos teóricos mais citados nas reflexões sobre a nação no domínio das Ciências Sociais – Renan, Fichte e Hobsbawm – para argumentar que a idéia de nação tem sido pensada, nesses autores, de uma perspectiva eurocêntrica. Para contrapor esses teóricos, a autora reflete do interior da história das idéias lingüísticas e se fundamenta em dizeres de João Ribeiro – um importante filólogo brasileiro do final do século XIX e início do XX – sobre a língua e a nação brasileira. 

ABSTRACT: This article discusses the formulation of some of the theorists most often cited in reflections about the nation in the field of Social Sciences – Renan, Fichte and Hobsbawm – to argue that the idea of nation is thought, in these authors, from a Eurocentric point of view. To oppose these theorists, the author makes her reflection from the perspective of the history of linguistic ideas and is based on the words of João Ribeiro –a major Brazilian philologist of the end of the nineteenth century and beginning of the twentieth – about the Brazilian language and nation.

(...)

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável,
o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida
um certo gosto por nadas...
E se riu.
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas
e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
gramática.

(...) Mundo pequeno (do livro “O livro das ignorãças, de Manoel de Barros)

Introdução
Meu objetivo, do ponto de vista epistemológico, neste estudo, é tomar uma perspectiva crítica em relação ao eurocentrismo que nos afeta em nosso modo de fazer ciência, com reflexões importadas que nos prendem em antinomias estr(e)itas, na homogeneidade de posições que nos impedem de tornarmos visíveis aspectos de nossa história política e social, e de nossa história do conhecimento. No campo das idéias lingüísticas, nos são atribuídos sentidos antes mesmo que possamos nos situar face ao lugar dessas teorias na história das ciências e na história social. E, se não cabemos, com nossas reflexões, nessas categorizações que nos significam, somos considerados como produzindo não explicações e elementos para a compreensão, mas idéias exóticas, ou pior, fantasistas, sem legitimidade no campo da ciência.
Por isso, penso que, ao tomarmos uma posição na história das ciências, podemos considerar não apenas pontos de vista que se opõem rigidamente, mas podemos pensar em contradições, equívocos, trabalhando noções em sua polissemia, em suas ambigüidades, no jogo das homonímias e de sentidos outros.

O nosso assunto
Língua e nação: estamos diante de duas noções extremamente difíceis em suas definições. Justamente porque, a propósito delas, já existem discursos que fazem-nas parecer já conhecidas, sabidas, experimentadas, tratadas no senso-comum. E como se existissem desde sempre como tal. No entanto, estas são noções carregadas de ambigüidades, de contradições, de equívocos e são datadas.
Para língua, sabemos como as diferentes perspectivas, na lingüística, se definem por esta ou aquela definição de língua. E vemos a palavra nação servindo a uma variedade de argumentos bastante ampla quando se tenta instrumentalizá-la em relação a noções como a de cultura, de estado, de povo etc.
A posição que tomo, a de quem analisa discursos na perspectiva da história das idéias lingüísticas, me leva a afirmar que não podemos concebê-las em si. Só faz sentido falar em língua, se podemos falar em línguas, ou então falar em língua materna, língua estrangeira, língua nacional. Assim como também para nação sempre a pensamos face a suas determinações: uma concepção romântica de nação, uma concepção positivista de nação, uma concepção iluminista de nação, uma concepção burguesa, moderna  (Estado-nação) de nação. E vemos então que a noção de nação e de língua é lugar de muitas discussões, e poucas precisões. Mais complexa ainda é a situação teórica se falamos da relação entre as duas: língua e nação.
Para iniciar, podemos pensar a língua nacional como sendo este imaginário de língua que se reveste de uma unidade que cobre assim um território correspondendo a um Estado-Nação, Noção esta dominante nos tempos modernos. E é com a língua nacional que o Estado se apresenta com sua soberania frente a outros Estados. No entanto, e este é nosso esforço nesta reflexão, com que nos comprometemos quando falamos em (língua) nacional? Que idéias de nação se alojam aí? Que história podemos contar a partir de um arquivo (discurso documental) constituído pelos autores que propõem-se a falar sobre nação?
E ao colocarmos estas questões, estamos procurando não receber automaticamente efeitos de sentidos já construídos que produzem homogeneidade, posições unívocas e definitivas sobre estas noções.

Renan e Fichte: o padrão das reflexões começa sempre por aí
Toda vez que se fala em nação, em alguma reflexão, que procura ter algum fundamento, são esses os nomes de autores que surgem de imediato.
Vejamos o que se pode dizer a partir deles.
É notável o que diz Renan no final de sua conferência sobre o que é nação, em março de 1882: “Um plebiscito todos os dias”. E é esta a referência primeira quando se fala do que é nação para Renan. Mas uma referência perturbadora porque, como veremos, ele é mobilizado para defender posições contrárias.
Mas voltemos ao enunciado acima. Na maneira em que é repetido quando se refere ao que é nação para Renan, ele se apresenta como um slogan. É, pois, uma definição-slogan. E como se apresenta no final de seu texto, funciona como uma espécie de resumidor (o efeito de sustentação de que fala M. Pêcheux). O que impressiona nela é esta formulação. Funcionando como um aposto, e trazendo a idéia de um processo em curso permanentemente. Nada mais impressionante para se definir o que é uma nação. A idéia de movimento contínuo aí faz sua presença. Nação, um plebiscito todos os dias, um plebiscito diário.
Mas as interpretações, os comentários que encontrei nem sempre se referem a isto. Vejamos o que dizem, preferentemente. De modo polêmico, alguns o repetem para afirmar a importância do nacionalismo francês que vai dar, como diz Joël Roman (1992), em Barrés e Maurras (ponto de vista, por exemplo, de J. Boulanger,1925, e de A. Benoist,1982). Outros o referem para dizer que ele é a melhor expressão da doutrina republicana (M. Agulhon, 1985). De fato, é difícil encontrar uma coerência entre seu elitismo antidemocrático em textos como “Dialogues Philosophiques” (e de muitas passagens de seu La reforme intellectuelle et morale, 1875) e o apelo à legitimidade do voto na questão nacional. Ainda segundo Roman (idem, p.6), ele mesmo se gabava de suas contradições: “Eu estava predestinado a ser o que sou, um romântico protestando contra o romantismo, um utopista pregando a política do terra-a-terra, um idealista fazendo inutilmente esforço para parecer burguês, um tecido de contradições, lembrando o da Escolástica, que tinha duas naturezas”. Parece um democrata, é evocado pela esquerda e é conservador.
Expandindo-se além da Europa, a questão de nação vai, depois, acordar todas as utopias pós nacionais, diz Roman (idem). No leste, no Sul, os nacionalismos explodem. E pode-se mesmo pensar em uma Europa dos Povos contra uma Europa das Nações. Isto, depois da dominância da idéia do Estado-nação. É esta a conclusão a que chegamos lendo a introdução de Roman ao livro Qu’est-ce qu’une nation? et autres essais politiques (1992), onde encontramos a conferência “Qu’est-ce qu’une nation?” (1882), de Renan.
No entanto, o que é espantoso, é que há muito pouco pensado sobre a noção de nação. Ainda segundo Roman (idem), o mais eficaz dos conceitos políticos do século XIX e XX, e também o mais mortal, e o mais tenaz, quase não foi objeto de estudos sistemáticos. É o grande impensado de nossa tradição política, afirma. Quer-se assim que ele seja visto como algo ultrapassado, datado, que ficou no passado, ou que simplesmente seja visto como algo que serve para cristalizar arcaísmos que a entrada na modernidade suscita. Por isso é importante a reflexão de Renan, na falta de outros textos de referência. Não só o dele (“O que é uma nação?”,1882) mas outro que lhe fará contraponto, o texto de Fichte, Discurso à nação alemã, de 1802. A ele se poderia juntar o texto de O. Bauer, de 1907, A questão das nacionalidades e a social-democracia.1
Estes diferentes autores, Renan e Fichte, com seus textos, têm sido vistos como opostos. Eu diria que eles não se opõem, são concorrentes e/mas se envolvem de forma contraditória. É a concepção, digamos, européia, de nação, tal como se apresenta na modernidade. Um francês e um alemão. Com suas determinações históricas intelectuais e políticas. De fato, Renan aparece, em geral, com a idéia de uma concepção eletiva de nação, particularmente adequada ao individualismo democrático moderno. E Fichte como o promotor (como Herder) de uma concepção étnica da nação, investida ainda do holismo tradicionalista. Isto, pelo menos, é o que diz L. Dumont em seu Peuple et nation chez Herder et Fichte,1979. Posições opostas ao estilo das que recebemos do continente europeu, e que nos deixam pouca opção. Daí sermos vistos, se falamos em nação, ou do lado de Renan, ou do lado de Fichte.
Mas penso que não é tão fácil assim, colocá-los pura e simplesmente em posições opostas. Isto só é possível em uma vulgata resultante mais da falta de leitura do que do conhecimento desses autores.
É isso que fazemos quando falamos: “em linhas gerais”.
Mas se particularizamos um pouco esta interpretação, encontramos dificuldades nessa grossa oposição. Como diz Roman (idem), há paradoxos.
Como um é francês e o outro alemão, se fala da concepção alemã e da concepção francesa de nação. Ou seja, envolve-se a própria teoria no fato da nação enquanto tal. E aí parece que a concepção étnica, que é de certo modo a mais particularista, é a mais universal; e que a concepção eletiva, de aspiração universal, é mais estritamente francesa. E, claro, para não sermos etnicistas, ficamos do lado de Renan, falando da superioridade de sua concepção. Mas o que acontece é que ambas, a França e a Alemanha, estão em posições análogas: elas têm que encontrar um modo de legitimação que substitua a legitimidade tradicional.
Fichte fala da palavra “deutsch” e da noção de povo original. À nação por excelência responde “o povo por excelência”. Nação e povo se sustentam. A metáfora de Fichte é organicista e etnicista. Unidade do povo= homogeneidade garantida pela metáfora organicista.
Do mesmo modo é esta a acepção de povo, de Fichte:

um povo é pois um conjunto dos homens que vivem junto em sociedade e se reproduzem sem cessar por si mesmos, espiritual e naturalmente, obedecendo a uma certa lei especial, segundo a qual o elemento divino se desenvolve neste conjunto. É a comunidade deste lei especial que, no mundo eterno, e no mundo temporal, reúne esta multidão em um todo natural e homogêneo.

É o que se constata nos alemães como povo primitivo. Daí a subordinação do Estado à nação, como o meio ao fim. Isto parece confirmar Fichte como o inventor de uma concepção etnicista de nação. No entanto, é preciso observar que Fichte desenvolve uma concepção voluntarista do laço de concidadania. Ele invoca assim a nação contra o particularismo e exclusivismo dos Estados alemães, dizendo que apesar desse particularismo, “podemos encontrar na Alemanha, considerada como um todo, a maior liberdade de pesquisa e de ensino que um povo jamais viu”. É o próprio povo que faz sua educação.
Mas não se pode esquecer o que levou Fichte a escrever seu Discurso: a necessidade de acordar o patriotismo alemão, que desemboca na necessidade de dar prioridade à educação. É a idéia organicista do povo como um todo, mas da unidade de diferentes classes. São as aristocracias germânicas e francas que vão mobilizar as doutrinas elitistas e transnacionais de raça. Em Fichte, podemos dizer que a nação é portadora de universalidade. Eis o trabalho das contradições. Encontramos nele a emancipação da religião, a conquista da interioridade. Mesmo no Fichte do Discurso, diz Roman (idem), a nação não é somente a totalidade orgânica de referência, signo de um holismo tradicionalista, mas ela procura responder a questão da legitimidade de instituições políticas modernas. E, ao inverso, vemos que a concepção de Renan não dá tudo que devia ao individualismo da adesão voluntária.
Renan, por seu lado, não é só o Renan do “Um plebiscito todos os dias”. Este enunciado é o ponto de chegada de um longo percurso. Renan para chegar aí renunciou a um modo de definição de nação, seu, que repousava sobre o princípio dinástico. Em seu “La reforme intellectuelle et morale” ele opõe o princípio dinástico ao democrático e vê nos dois princípios os operadores de legitimidade de duas grandes questões: a questão nacional e a social. Ele luta por uma monarquia constitucional, então, pois é a maneira segundo ele, de remediar os excessos de cada um dos princípios, de combiná-los e não opô-los. Com a anexação da Alsácia-Lorena e as justificativas alemãs, ele é conduzido a tomar partido a favor de uma concepção eletiva de nacionalidade. Ele balança entre um cosmopolitismo europeu e um patriotismo francês que leva ao tema da pátria de direito. A Reforma é um texto em que Renan dá curso a sua febre elitista e antidemocrática. O comentário de Roman é que é assim que ele é lido muitas vezes, quando se quer privilegiar nele a hostilidade a 89. Ao mesmo tempo, pensando a derrota da França para a Alemanha, ele reforça de forma inesperada a causa democrática: a única legitimidade de que pode se prevalecer uma nação, diz ele, é a adesão das populações, tal como se manifesta pelo sufrágio (pelo voto). Aí deixa de ser elitista e é um democrata convencido. E fica neste paradoxo: é democrata quanto à questão da legitimidade e é elitista quando se trata da organização da sociedade face aos avatares da sociedade de massas (Roman, idem).
Não é pelo culto da continuidade nacional que ele admite a democracia. Mas para validar o viver-junto nacional, Renan reconhece a superioridade prussiana na sua força no desenvolvimento da instrução primária e na identidade do exército e da nação (Exército/Nação/Educação). O ponto dessa superioridade, comenta Roman, é que o Estado aí fortifica a sociedade. E já aí se argumenta em face dos dois modelos de sociedade: o americano e o prussiano. O americano, fundado na liberdade e na propriedade, sem privilégios de classe, sem instituições antigas, sem história, sem sociedade aristocrática, sem corte, sem poder brilhante, sem universidades sérias nem fortes instituições científicas, sem serviço militar obrigatório para os cidadãos. Nesse sistema o indivíduo, muito pouco protegido pelo Estado, também é pouco incomodado pelo Estado. O prussiano, que é o do antigo regime desenvolvido e corrigido. O indivíduo é tomado, educado, arrumado, disciplinado, requisitado sem cessar por uma sociedade que vem do passado, moldado em velhas instituições, e que se arroga a moralidade e a razão. O indivíduo dá enormemente ao Estado. Recebe em troca uma forte cultura e moral e participa de uma grande obra.
São sociedades nobres. Criam ciência, dirigem o espírito humano, fazem história, mas estão todo tempo sendo enfraquecidas pelas reclamações do egoísmo individual. O princípio da legitimidade dinástica se opõe ao direito das nacionalidades, que, por sua vez, se assentam nos grupos naturais determinados pela raça, história e vontade das populações. Renan defende o princípio das nacionalidades para reivindicar a Alsácia. E ele vai cada vez mais na direção de uma concepção histórica de nação, colocando em pauta as mestiçagens de línguas e raças às quais as nações dão lugar e, inversamente, o princípio das nacionalidades vai se carregar cada vez mais da vontade de adesão efetiva das populações.
É assim que se movimentam essas concepções na relação contraditória entre Renan e Fichte, entre Alemanha e França. História, cultura e mesmo considerações de ordem geopolítica, diz Roman, entram em cena.
A democracia, para Renan, é a irrupção das massas no espaço público. É o que ele chama de questão social. No balanço entre as questões patrióticas e as questões sociais, ele reclama um novo direito das nacionalidades: o consentimento das populações. Dizendo que não há raça pura, e que esta idéia de raça pura leva a guerras de extermínio, guerras zoológicas (sic) que vão na direção do fim da mistura fecunda que constitui o que chamamos humanidade, ele já se aproxima do enunciado slogan com que iniciei esta apresentação de suas idéias, ou seja, de uma concepção política da nação: Um plebiscito todos os dias.
Desse ponto de vista, a nação não tem nenhum fundamento natural: nem a raça, nem a língua. No entanto, seus trabalhos científicos como filólogo sustentam a idéia de temperamentos nacionais que se originam na raça e se sedimentam na língua. Como conciliar estas idéias com sua denúncia contra o nacionalismo racista ou lingüístico?
Primeiro, ele reforça a autonomia das disciplinas científicas. Afasta ciência e política. Depois ele descarta qualquer noção biológica de raça, tendendo à antropologia. Em seguida, ele reforça a concepção política de nação, autônoma e que não reclame um fundamento científico. Não a liga nem à raça, nem à língua, nem ao povo.
Uma nação, diz Renan, é uma grande solidariedade, constituída pelo sentimento dos sacrifícios feitos e dos que se está disposto a fazer ainda. Ela supõe um passado; ele se resume no entanto no presente por um fato tangível: o consentimento, o desejo claramente expresso de continuar a vida comum (1992, p. 54/55). A existência de uma nação, acrescenta ele, é (perdoem-me a metáfora) um plebiscito de todos os dias, como a existência do indivíduo é uma afirmação perpétua de vida( ibidem, p. 55). Eis aí nosso enunciado. Agora despido de seu caráter de slogan. E é assim que aparece no autor. Ora, uma das razões de se fazer a história das idéias é bem essa: conseguir atingir o ponto em que o real discursivo encontra o imaginário que se produz através das imagens enunciativas que se vão construindo no movimento da historicidade e das representações das diferentes épocas, de acordo com as necessidades históricas. Por isso desembocamos nesse democratismo do slogan.
Para concluir esta parte da análise, podemos dizer que a nação vai, com efeito, fornecer o quadro, segundo Roman (op.cit.), no qual as instituições republicanas vão poder se alojar. É assim que o universalismo republicano e o juridismo moderno vão poder se encarnar em uma nação particular, tornando-se esta uma espécie de universal singular para parafrasear Sartre. A nação é efetivamente soberana nesse esquema, ela vem se instalar no lugar deixado pelo monarca. Ela é o elemento não submetido à discussão democrática. A indeterminação democrática, como diz Claude Lefort, pára no limiar da nação, cuja legitimidade pode tanto menos ser posta em dúvida na medida em que as instituições que lhe dão figura ancoram na universalidade do direito.
Para Hannah Arendt, no seu Essai sur la révolution, há uma oposição entre a maneira como os Americanos souberam pensar as instituições representativas, enquanto os franceses permaneceram vítimas da noção de soberania. Segundo ela, o recurso à idéia de soberania inscreve o espaço democrático novo, que emergiu, sob a dependência de uma transcendência tradicional. Os republicanos vão estar bastante conscientes, aliás, desta questão, para procurar manter, entre o Estado e a Nação, uma distância cuja tentação de suprimir foi fatal à Revolução. E isto vem por uma teoria progressista da história em que há um recorte das instituições e um progresso do saber, inclusive de um progresso do saber da sociedade sobre ela mesma.
Chegamos, pois, aí à separação das noções de Estado/Nação. Sem esquecer que as idéias de Fichte, as do voluntarismo nacionalista, foram dar em um momento da história da humanidade bastante difícil. E as idéias de Renan vão dar, se quisermos, na União Européia. Mas este seria um outro percurso a fazer. Se o trago aqui para a reflexão é porque somos presas dessa contradição quando pensamos agora a nossa questão da relação língua/nação/Estado.

Hobsbawm: nação e nacionalismo
Este autor já começa dizendo que o século XIX é o século de construção das nações, mas que é no período de 1968/1988 que se estuda mais o que é nação. E inicia suas considerações pela crítica de se considerar nação apelando para a noção de consciência dos que a ela pertencem. Ou seja, uma definição a posteriori do que é nação. Diz então que vai tratar como nação “qualquer corpo de pessoas suficientemente grande cujos membros consideram-se como membros de uma nação” (Hobsbawm, 1991, p.18). Esta, a meu ver, é uma definição circular que esclarece pouco sobre o conceito de nação. Mas o autor a propõe como hipótese inicial para distinguir então uma definição a posteriori de nação, como a que citamos mais acima de uma definição prospectiva: aquela que conceitua a nação a partir do nacionalismo. Nacionalismo significando 1. Um princípio que sustenta que a unidade política e nacional deve ser congruente; 2. A nação não é uma entidade social originária e imutável, mas, ao contrário, ela pertence exclusivamente a um período particular e histórico recente. Só se torna entidade se relacionada ao Estado moderno, Estado-nação. O nacionalismo vem, assim, antes das nações. As nações não formam os Estado e os nacionalismos, mas sim o oposto; 3. A questão nacional, segundo os marxistas, está situada na intersecção da política, da tecnologia e da transformação social. Não são só uma aspiração, mas resultam de um contexto de estágio particular de desenvolvimento econômico e tecnológico (ex: línguas padronizadas nacionais, faladas ou escritas, só são nacionais dada a imprensa e a alfabetização em massa).
Cita três coisas que para ele são claras: 1. As ideologias oficiais de Estados e movimentos não são orientações para aquilo que está nas mentes de seus seguidores e cidadãos. 2. Não podemos presumir que, para a maioria das pessoas, a identificação nacional – quando existe – exclui ou é superior ao restante do conjunto de identificações que constituem o ser social (o social acima). Ela é combinada com outras. 3. A identificação nacional pode mudar e deslocar-se no tempo.
A consciência nacional se desenvolve desigualmente entre os grupos e regiões sociais de um país e os movimentos nacionais passam por 3 fases: 1. Que se desenvolve na Europa do século XIX. Foi puramente cultural, literária e folclórica sem implicações políticas particulares. 2. Encontramos um conjunto de pioneiros e militantes da idéia nacional e o começo de campanhas políticas em prol dessa idéia. 3. Quando os programas nacionalistas encontram sustentação das massas. A passagem da fase 2 para a 3 é crucial na cronologia dos movimentos nacionais. Algumas vezes ocorre (como na Irlanda) antes da criação de um Estado nacional, mas ocorre com muito mais freqüência depois, como conseqüência dessa criação. Outras vezes, como no assim chamado Terceiro Mundo não ocorre nem mesmo então (1991, p.21). Vou voltar a esta afirmação logo em seguida. Antes só mais alguns pontos interessantes encontrados em Hobsbawm.
A característica básica da nação moderna é, precisamente, sua modernidade. O Dicionário da Academia Espanhola não usa a terminologia de Estado, nação e língua antes da edição de 1884: a língua nacional é a língua oficial e literária de um país e, à diferença de dialetos e de línguas de outras nações, é a língua geralmente falada. Antes de 1884, uma nação é o agregado de habitantes de uma província, de um país ou reino. Mas agora é um Estado ou corpo político que reconhece um centro supremo de governo comum e o território constituído por um Estado e esses habitantes, considerados como um todo. Diz então Hobsbawm (1991, p.27.) que o elemento de um Estado comum e supremo é central nessas definições (será para nós?). A nação é o conjunto de um país regido por um mesmo governo. Na enciclopédia brasileira, Mérito, a nação é a comunidade de cidadãos de um Estado, vivendo sob o mesmo regime ou governo e tendo uma comunhão de interesses; a coletividade de habitantes de um território com tradições, aspirações e interesses comuns, subordinados a um poder central que se encarrega de manter a unidade do grupo; o povo de um Estado, excluindo o poder governamental. No Dicionário da Academia Espanhola (1991, p.28), só é encontrada em 1925: “a coletividade de pessoas que têm a mesma origem étnica e, em geral, falam a mesma língua e possuem uma tradição comum”. Nas línguas românicas, a palavra nação é vernácula (natio), nas outras é estrangeira. Em alemão, o vernáculo correspondente é volk (povo).
Finalmente, ficamos em suas considerações sobre o fato de que o significado fundamental de nação era político. Equalizava povo e o Estado à maneira das revoluções francesas e americana, uma equalização que soa familiar em expressões como Estado-nação, Nações Unidas ou na retórica política do século XX. A nação inclui a cidadania e a participação em massa.

Conclusão: E nós, do outro lado do Atlântico?
No caso dos países que passaram pelo processo de colonização, a questão da nacionalidade, Estado, Língua se coloca de maneira bastante distinta.
Primeiramente, à diferença do que vimos em Renan, e sobretudo em Hobsbawm, pode-se falar em nação, antes do Estado. Desde que os portugueses aqui chegaram, como temos afirmado em diferentes ocasiões, a língua foi sofrendo sua diferenciação. Do mesmo modo, foi-se formando uma nação, com sua sociedade. E é no século XIX, com a Independência, que podemos falar em Estado brasileiro. Momento em que a nossa sociedade se organiza e eclode o trabalho intelectual que dá visibilidade à nossa língua, às nossas instituições. E, como afirma em seu trabalho, João Ribeiro, Língua Nacional , “a língua portugueza deixou de ser céltica, latina, arábica ou visigothica, para conquistar a sua individualidade actual” (1933, p.21). E isto está, nele, referido a sua reflexão sobre a chamada língua de Estado, que João Ribeiro traz de Rupert Hughes, que estabelece essa noção, em seus estudos, para falar do inglês americano. “Tanto no norte como no sul”, diz João Ribeiro, “precisamos afirmar a existência de uma língua de Estado. Todo homem educado escreve corretamente sua língua em qualquer parte do mundo” (ibidem, p.19). Volta a questão do sujeito, o homem, e a questão da instrução: o homem educado. Isto no entanto não é elitismo. E esta língua de Estado, segundo João Ribeiro, não será uma língua nova mas um propósito da indiferença pela língua alheia. Aí, a meu ver, está resumida a necessidade de se afirmarem os grupos, em sua identidade face ao outro Estado, à outra nação. E isto dito através de um argumento sobre a língua. Diferença e legitimidade jogam ao mesmo tempo. E ele diz: “são diferentes e legítimos (nossos modos de dizer) e, o que é melhor, são immediatos e conservam pois, o perfume do espírito que os dicta” (ibidem, p.11). Não penso que isto esteja ligado a qualquer sentido posto por Fichte em seu etnicismo. Talvez se deixe tocar por um sentido de individualidade, como pretende Renan. Mas embora ele fale em exame psicológico, como pude mostrar em meu capítulo sobre língua nacional (Orlandi, 2009), ele observa o que hoje chamaríamos de efeito pragmático: diga-me, me diga. Cria uma utilidade nova e um delicado matiz que a língua européia não possui (op.cit., p.70). Argumenta contra a pureza excessiva, a perfeição, dizendo que o que lhes agrada (aos portugueses) é o fato de que “sacrificamos nossas expressões imediatas (quer dizer transformadas, locais) em favor de uma lingua literária, esterilizada, despida de todos os seu “venenos regionais” (ibidem, p.18). Nossa língua é a portuguesa mas enriquecida e adaptada ao novo e longínquo ambiente (...) não só enriquecida mas reconstruída” (ibidem, p.26). E não deixa de colocar a importância do político: “A nossa independência e separação em 1822 abriu desde logo um curso divergente entre o vernaculismo português e o americano” (ibidem, p.27). Nosso vernaculismo. Antes a vernacularidade era só dos portugueses. Essa é a conseqüência da entrada do político, da noção de Estado, no período da nossa gramatização da língua brasileira.
Também gostaríamos de questionar uma idéia afirmada por Hobsbawm. Segundo ele, a passagem da fase 2 para a 3 é crucial na cronologia dos movimentos nacionais. Algumas vezes ocorre (como na Irlanda) antes da criação de um Estado nacional, mas ocorre com muito mais freqüência depois, como conseqüência dessa criação. Outras vezes, como no assim chamado Terceiro Mundo não ocorre nem mesmo então.
Como se pode depreender do que disse, através de João Ribeiro, mais acima, passamos da fase 2 para a 3 e isto ocorre antes da criação do Estado e acelera com sua criação. Não reconhecendo isso, o que nos vetam, eu diria, parafraseando João Ribeiro, é todo progresso nacional, para usar termos que são usados ao longo da reflexão sobre nação e bem ao gosto dos republicanos, que têm sua base no positivismo, sobretudo no caso do Brasil. Falando da língua, fala da nação: “(...) não quer ter nenhum sotaque, desdenha e suffoca a espontaneidade própria e vive de uma língua fictícia e imaginária” (ibidem, p.17). Esta é a busca do real da língua no real de sua história, da nossa história da língua, de sua relação com a nação e com o Estado.
Podemos concluir dizendo que não há paralelismo entre uma oposição como a que existe entre Renan e Fichte e o que se dá no Brasil, país de colonização. E isto se deve ao fato de que os sentidos do político, do Estado, da nação, deste lado do Atlântico, não são os mesmos que estão sendo gestados na Europa, neste momento da história. Portanto, dizer que ao reivindicarmos uma língua nossa no século XIX ou hoje seja uma posição que deriva do romantismo alemão é tão improvável quanto dizer que estamos aí nos inscrevendo na concepção eletiva do individualismo democrático moderno de Renan. Estamos, no século XIX, saindo oficialmente do domínio da colonização européia. E para isso estamos institucionalizando nossos instrumentos intelectuais, políticos, sociais. O de uma língua, uma nação, um Estado outro. E que relação existe entre Língua e Nação? Entramos aí em uma realidade extremamente complexa. E que demanda outro momento de reflexão. Neste texto, o meu objetivo era só o de mostrar como é preciso polemizar a noção de nação que, muitas vezes, nos chega com os sentidos já prontos.

 

Notas


1 Mais recentes são as obras de Eric Hobsbawm Nações e nacionalismo, desde 1780, de que vou falar (1992) e Teorias do Nacionalismo, organizado por Gil Delannoi e Pierre-André Taguieff, de 1991.

 

Referências Bibliográficas

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BESNOIT, A. La réforme intellectuelle et morale et autres écrits, Albatros, Paris, 1982.
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RENAN, E. (1882) Conferência: “Qu´est-ce qu´une nation?”, in Qu´est-ce qu´une nation? et autres essais politiques (1992), Presses Pocket.
___________. Dialogues Philosophiques, Calman-Lévy, Paris, 1876.
___________. La réforme intellectuelle et morale, Calman-Lévy, Paris, 1876.
RIBEIRO, J. Língua Nacional : notas aproveitáveis, Cia Editora Nacional, São Paulo, 1933.

 

Palavras-chave: nação, língua nacional, eurocentrismo
Key-words: nation, national language, eurocentrism

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