APRESENTAÇÃO

Autores, dicionários e leis compõem os objetos de reflexão dos textos deste número duplo, 23/24, de Línguas e Instrumentos Lingüísticos.
O primeiro artigo, “Língua e nação: uma questão e seu quadro de referência teórico” discute as “clássicas” formulações de Renan, Fichte e Hobsbawm sobre a nação. Eni Orlandi nos mostra, de um lado, que elas se dão de uma perspectiva eurocêntrica, que não responde a certas questões postas do nosso lado do Atlântico, e, de outro, que a referência a esses autores, tal como vem sendo feita, é simplificadora, na medida em que reduz a relação entre Renan e Fichte a uma mera oposição, sem pensar as contradições. Da perspectiva da história das idéias lingüísticas, a autora examina os autores europeus na relação com os dizeres do filólogo João Ribeiro sobre a língua e nação brasileiras. 
Verbetes de dicionários são objetos de análise nos dois próximos artigos. Em “Reflexões acerca do funcionamento das noções de língua e de sujeito no Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul”, Verli Petri observa o funcionamento da noção de língua em suas relações com as formas de identificação do sujeito gaúcho por meio da análise do processo de dicionarização de dois termos regionalistas rio-grandenses – “linguagem gauchesca” e “poesia gauchesca” – em dicionários de regionalismos.
Em “Cidade, ville, cité: três percursos lexicográficos”, Sheila Elias de Oliveira analisa o percurso da palavra cidade e dos seus equivalentes em francês ville e cité em dicionários que serviram de referência para a lexicografia monolíngüe que os sucedeu em Portugal e no Brasil, de um lado, e na França, de outro. Examinando-os entre o século XVII e o XIX, a autora mostra as particularidades que diferenciam essas palavras no seu modo de significar o urbano e o político.
Olimpia Maluf-Souza, em “A instalação dos sentidos de imputação a partir do deslocamento da forma verbal”, reflete sobre os deslocamentos discursivos entre o Discurso do Código Penal Brasileiro e o Discurso do Laudo Pericial, a partir do laudo do caso do estuprador e homicida conhecido como Maníaco do Parque. Analisando o tempo e o aspecto verbais, a autora mostra que a relação entre as temporalidades nas duas textualidades cria a condição de possibilidade para a inimputabilidade sustentada pela Psiquiatria Forense, ao decidir sobre a necessidade de internação em manicômios em detrimento da prisão.
O discurso jurídico é também o objeto de “Calçadas: espaços públicos ou privados?”. Neuza Zattar mostra como um conjunto de leis da cidade de Cáceres, no Mato Grosso, ao enunciar sobre as calçadas, abre espaço para a sua indeterminação enquanto espaço público ou privado, o que acaba por resultar em diferentes apropriações das calçadas pelos cidadãos. A autora advoga que o invasionismo, isto é, o uso privado das calçadas, é amparado por estas leis.
“Razões da crítica” discute os fazeres da crítica e da teoria literária. Segundo Renato Suttana, além das preocupações com o entendimento e a interpretação das obras da literatura, ambas as disciplinas se viram, nos últimos tempos, confrontadas com o desafio de pôr em questão o seu próprio estatuto. O autor advoga que ao alimentar a veneração pelas obras, elas têm produzido um discurso que se representa como idôneo, e que produz conceitos e saberes que ignoram e não reconhecem o seu próprio movimento. Seria hora, então, de uma mudança de paradigma nesses domínios de saber literário?
A seção Crônicas e Controvérsias traz o texto “Discurso fundador e representação: os sentidos de “brasileiro” em Oliveira Viana e em Sérgio Buarque de Holanda”. Carolina de Paula Machado revisita obras consideradas fundadoras do pensamento sobre o Brasil produzido por brasileiros, a partir de um olhar voltado para a produção de sentidos sobre as denominações portugueses, índios, negros, mestiços e brasileiros. Este olhar direcionado aos nomes que identificam o sujeito brasileiro permite não só observar o discurso de tom nacionalista atribuído freqüentemente a esses autores, mas também dar visibilidade à tensão contraditória entre este discurso e o discurso do colonizador.
A resenha deste número, “Língua brasileira: conseqüências do pensar/dizer diferente”, de Angela de Aguiar Araújo, toma como objeto o livro Língua brasileira e outras histórias. Discurso sobre a língua e a escola no Brasil, de Eni Orlandi. A obra congrega um conjunto de artigos sobre a história das idéias lingüísticas no Brasil. Sobre sua relevância, a resenhista afirma: “Os acontecimentos discursivos da língua brasileira e da autoria brasileira na teorização da própria língua abrem importantes espaços para a reflexão sobre as conseqüências do pensar/dizer diferente.” Em um tempo de tantos consensos aparentes produzidos junto a uma contraditória exaltação da diferença (esta mesma um consenso aparente), o dizer teórico que se faz legitimamente um pensar/dizer diferente merece a nossa atenção.
Com textos que se dividem entre a reflexão sobre os fazeres teóricos, as leis e os processos de dicionarização de itens lexicais, o presente número de Línguas e Instrumentos Lingüísticos oferece trabalhos que buscam retirar do lugar comum dizeres estabilizados sobre a língua, a linguagem e a ciência.

Os Editores

 

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