Crônicas e Controvérsias

 

Generalizar o único: gêneros, tipos
e esferas em Bakhtin

Patrick Sériot
Universidade de Lausanne

Resumo: Se em Bakhtin se trata da questão de gêneros (žanry), não é certo que eles concernem ao que se compreende em francês como “discurso” segundo M. Foucault ou M. Pêcheux. Façamos então a escolha experimental de traduzir “rečevye žanry” por “gêneros da fala” ao invés de “gêneros do discurso”, e exploremos as conseqüências desta escolha de tradução. É , parece-me, uma outra dimensão que então se abre: uma teoria do sujeito pleno e não do sujeito dividido, uma teoria do enunciado e não da enunciação, uma perspectiva personalista e ética do ser humano e uma filosofia monista da ligação e da totalidade, bastante distanciada do Bakhtin lido através das categorias da enunciação de Benveniste e do sujeito dividido de Lacan, recepção típica do mundo francofone. Uma re-contextualização fina da noção de “rečevye žanry” de Bakhtin, a partir de seu mundo cultural próprio (russo e alemão), e da conjuntura intelectual da URSS do início dos anos 50 do século XX, é proposta como solução para esclarecer os múltiplos mal-entendidos provocados por uma leitura de Bakhtin fora de seu contexto. Uma atenção muito particular é dada, a partir das noções de ligação, de totalidade e de “ciência integral”, à questão do limite  entre os objetos estudados (aqui os “gêneros” e os “enunciados”).

Palavras-chave: gêneros, tipos, epistemologia, ontologia, enunciado, Bakhtin, Vinogradov, Stalin.

“Só há ciência do geral”
(Aristóteles: Seconds Analytiques, I, 31, 87b)

“O contexto individual do enunciado é irreiterável”
(Bakhtin: Rečevye žanry, 1997, p.192)

 

0 Doxografia

0.1 Recepção
Saransk (Mordóvia), 1952. Um lugar e um tempo. Em outras palavras, um cronotopo, bastante distanciado da Paris dos anos 70. Uma pequena diferença que vai nos ocupar bastante.
A cultura russa é às vezes vista, no “Ocidente”, à imagem de um mapa mundi medieval: o mundo conhecido aí é cercado pelo mundo desconhecido, povoado por criaturas maravilhosas e aterradoras1. Para deixar esta noite onde todas as vacas são pardas, façamos uma leitura bakhtiniana de Bakhtin: recolocando-o em seu contexto soviético dos últimos anos da época stalinista, é um personagem bem menos misterioso que aparece, engajado, como todo mundo, nos debates e preocupações de sua época.
Mas o contexto de produção só toma seu sentido no contexto de recepção. A guerra fria, a relação (positiva ou negativa) com o marxismo dos intelectuais ocidentais, o espantoso decênio que seguiu os acontecimentos de 1968 (período que correspondeu à descoberta entusiástica de numerosos textos de Bakhtin) torceu o conhecimento que podíamos ter da URSS do imediato pós guerra. Uma implícita mas consensual conjuração de silêncio reuniu adversários ideológicos a ponto de que a “Grande luz que vem do Leste” só produzia mais obscuridade. E quando, depois da queda do Muro, aconteceu o primeiro encontro entre bakhtinianos russos e ocidentais2, o sentimento de incompreensão mútua foi uma experiência dolorosa.
A história aleatória e tortuosa das traduções faz com que seja só Bakhtin que tenha sido propulsionado para a frente da cena no “Ocidente”, cortado de suas fontes, arrancado de seu contexto, privado de qualquer ponto de comparação3, e reintegrado em outro contexto, colocado em um falso diálogo, com um mundo que não era em nada o seu, e que ele havia totalmente ignorado (Ducrot, Benveniste, Kristeva, mesmo Foucault e Lacan).
Se Bakhtin é tão facilmente considerado como único, é porque ele é o único a ser traduzido. No entanto, sem falar dos outros membros do “Círculo de Bakhtin” que esperam ainda ser descobertos no mundo francofone4, há muitos outros pensadores que emergem deste abundante período que foram os anos 1920-1940 na URSS. Podemos pensar em Olga Frejdenberg (1890-1955), cujo estudo magistral sobre a noção de gênero e de sujeito5 permite relativizar singularmente o caráter suposto excepcional das idéias de Bakhtin.
A recepção de Bakhtin no mundo francofone é menos um clima de opinião, ainda menos um quadro conceptual, do que uma doxa, para a qual a paternidade de Bakhtin sobre um número impressionante de textos, até a dissecação por Kanaev dos tentáculos de hidras nas experiências de regeneração dos tecidos biológicos, foi aceita sem discussão6.
Parece haver tantos Bakhtins quantos países de recepção. Se o Bakhtin norte-americano é um pensador liberal anti-totalitário, adotado pelas feministas e os “estudos pós coloniais”, o Bakhtin francofone é dividido em duas hipóstases: uma vítima heróica da opressão stalinista, ou então uma espécie de revolucionário anarquista. Em 1969, ele é, por exemplo, apresentado por Julia Kristeva como “continuador dos formalistas” (Kristeva, 1978, p.84, ao passo que Bakhtin utilizava a palavra “formalista” como o resumo de tudo ao que ele se opunha o mais vigorosamente7), se situando na mesma veia que Saussure dos anagramas (ib. enquanto Bakhtin só conhecia o CLG através da crítica que havia feito Vološinov em Marxismo e Filosofia da linguagem, em 1929) ou o Benveniste do discurso no sentido de “linguagem assumida pelo indivíduo” (p. 88, o que negligencia a diferença que faz Benveniste entre locutor como pessoa real e sujeito de enunciação como “instância”). Bakhtin é visto como se situando na mesma linha de pensamento que o Freud da divisão do sujeito (p. 86, ao passo que toda sua vida ele chamou à responsabilidade de cada instante da vida do homem “integral”), ou o que Marx da ideologia alemã8 (a atitude de Bakhtin contra o marxismo certamente evoluiu, mas no fim dos anos 60 ele professava diante de seus editores Kožinov e S. Bočarov um virulento desprezo pelo marxismo). O artigo de J. Kristeva nos apresenta um Bakhtin inserido na “sociedade revolucionária” (p.90), um Bakhtin que teria sabido “descobrir o dialogismo textual na escritura de Maïakovski, Khlebnikov, Bjelyï (para não citar senão escritores da revolução que inscrevem traços marcantes deste corte escritural” (p.91); um Bakhtin contestatório (“a produtividade contestatória”, p.91), sabendo detectar em Dostoïevski uma “estrutura carnavalesca” (p. 91), inimigo do monologismo, isto é, de Deus (p. 90,110), do cristianismo (p. 100), e da “frase indo-européia” (p. 89, 90). Enfim, um texto bakhtiniano em que a “estrutura do desejo” (p. 99) está na base do dialogismo como “aniquilação da pessoa” (p.100), em suma, um texto representativo da “modernidade” (p. 107, 112). Este catálogo de mal-entendidos poderia, por si só, servir de introdução a uma história dos sonhos dos intelectuais francofones desses anos em que Marx, Freud e Saussure davam-se bem na revista Tel Quel, e em que a cultura russa chegava às porções, truncada e fantasiada através do filtro do jogo político e ideológico do momento.
Um pouco de rigor filológico (ler os textos no original russo, no seu contexto estrito) permitiria no entanto evitar o anacronismo e sair da ignorância própria ao nosso provincianismo francofone. Se parássemos de ler os textos de Bakhtin de modo “monológico”, como o livro da revelação, poderíamos utilizar a enorme documentação sobre Bakhtin que agora está disponível na Rússia e no mundo anglofone9 e ler assim Bakhtin esquecendo tudo de Ducrot, Benveniste ou Kristeva. Bakhtin pertence a um contexto soviético específico, no qual ele deve se recolocado.

 

Mikhail Bakhtin

(1895-1975)

 

 

 

0.2 Tradução
O artigo de Bakhtin intitulado “Rečevye žanry” (daqui em diante ), conhecido em francês pelo nome de “Les genres du discours”) foi publicado pela primeira vez, post mortem, por V. Kožinov, sob a forma de fragmentos, na revista Literaturnaja učeba, 1978, n.1, p. 200-219. Uma versão mais completa, mas com numerosos cortes apareceu na coletânea Estetika slovesnogo tvorčestva, 1979, p.237-280, uma segunda edição dá um texto idêntico em 1986, mas nas páginas 250-325. O editor S. Bočarov aí apresenta uma antologia de textos de épocas muito diferentes, o primeiro de 1919: “A arte e a responsabilidade” e o último escrito por Bakhtin: “Por uma metodologia das ciências humanas”.
Trabalhamos aqui com um texto um pouco menos expurgado, mas ainda incompleto, publicado na Sobranie sočinenij [Oeuvres], t. 5, 1997, p.159-206.   
O manuscrito original, provavelmente inacabado, apresenta-se sob forma de 43 folhas recto-verso, escritas a lápis. Foi redigido no curso do ano de 1953. Esse texto fazia parte do “plano de pesquisas” de Bakhtin para o ano de 1953 no Instituto pedagógico de Mordóvia em Saransk10. Tratava-se de um trabalho que respondia a uma solicitação: seja um artigo para uma revista, ou um capítulo para uma coletânea coletiva, gênero de publicação muito comum na época. Ele estava certamente destinado a ser publicado, pois ele respeita as normas e contornos retóricos da época. Aí vemos Bakhtin desvelar-se em esforços para fazer passar sua terminologia em contraste com “palavra” e “proposição”. É sem dúvida graças a esse texto, que parece se ligar a alguma coisa de conhecido, que as noções de enunciado e de gênero passaram no “Ocidente”. Mas interpretar este texto sem levar em conta a situação das ciências humanas e sociais na URSS no início dos anos 50 dá uma imagem muito incompleta.
O editor S. Bočarov expurgou o texto de citações e alusões diretas à obra de Stalin Marksizm i voprosy jazykoznanija (O marxismo e as questões de lingüística), 1950. Em 1979, em pleno período brejneviano, Stalin tornou-se um não-ser, impossível de mencionar em uma obra. Mas as alusões muito diretas ao marxismo foram igualmente cortadas, o que mostra a pouca consideração que o editor tinha pelo discurso oficial da época.
Bakhtin não participou destes cortes, mas deu toda liberdade de ação aos editores. Não existe nenhuma prova material desta autorização, mas por outro lado, foi publicada na revista Moskva (n. 11-12,1992, p.180) uma carta de 7 de julho de 1962 na qual Bakhtin escreve a V. Kožinov, que ele teve de introduzir, em 1950, sob a pressão da comissão de experts da VAK11 uma grande quantidade de “vulgaridades repugnantes no espírito da época” (otvratitel'naja vul’garščina v duxe togo vremeni).
O texto de 1997 se apresenta com os mesmo cortes importantes, mas as passagens expurgadas são assinaladas por [...], o o que não era o caso nas duas edições da época soviética. Algumas expressões censuradas em 1979 foram re-estabelecidas em 1997, por exemplo o sintagma “troca de pensamentos” (obmen mysljami)12. Trata-se de uma alusão perfeitamente clara para o leitor da época à passagem de Stalin:

A língua é um meio, um instrumento, com a ajuda da qual as pessoas comunicam entre si, trocam seus pensamentos e chegam a se compreender[...] A troca dos pensamentos é uma necessidade constante e vital (Stalin, 1950, p.46).

As razões da restituição somente parcial das passagens cortadas não são fornecidas pelo editor S. Bočarov. Esses cortes são muito prejudiciais à compreensão do texto em seu contexto da época. Elas são tanto mais espantosas porque nas notas preparatórias, igualmente publicadas na edição de 1997, notas que não eram destinadas à publicação, encontramos referências explícitas ao texto de Stalin, assim como a menção aos nomes de Marx e Engels13. Estas notas não foram, desta vez, censuradas pelo editor.
As versões francesa (1984), espanhola (1982) e inglesa (1986) do texto de foram traduzidas a partir do texto publicado em 1979, expurgado por Bočarov. Dificilmente podemos criticá-los, mas este fato merece ser mencionado.
Desde que o artigo é conhecido na França, é considerado como uma evidência que a expressão rečevye žanrysó pode querer dizer “gêneros do discurso”; em seu artigo de 1969, J. Kristeva escreve: “[Bakhtin] trabalha atualmente em um novo livro que trata dos gêneros do discurso”(1978, p.82), enquanto o tradutor americano de explica que “speech genres” é uma “boa escolha” (McGee, 1986, p. VII), sem outra explicação, reservando “discourse” para traduzir “slovo” e “speech” para “rec”. Este simples exemplo mostra a que ponto há tantas interpretações da terminologia de Bakhtin quanto há traduções.

Comparação de três traduções de Problema rečevyx žanrov (1979):

Do mesmo modo, na página 264 o editor francofone nos adverte que o “título da edição original” é “ O problema dos gêneros do discurso”, como se Bakhtin tinha redigido seu texto em francês, sem jamais colocar a questão de saber se “Problema rečevyx žanrov” pode e deve ser traduzido por “gêneros do discurso”, como se o problema da escolha da tradução não se colocasse, como se se tratasse de uma simples operação de trans-codificação, árdua com certeza, mas unívoca no final da operação. A confusão do verbal e do discursivo na tradução francesa é bastante embaraçosa.
Ora, Bakhtin não falou evidentemente de “gêneros do discurso”; posto que ele escreveu sobre os “rečevye žanry”, é destas palavras que se deve partir, e interrogá-las inicialmente, antes de qualquer discussão sobre as diferentes exegeses. Se tivessem traduzido rečevye žanry por registros da fala [registres de la parole], é sem dúvida uma direção totalmente diversa que teria sido seguida, uma outra filiação dos termos e dos conceitos que teria sido referida14. Faremos aqui a escolha experimental em traduzir por “gêneros da fala” [genres de la parole] e estudar as conseqüências interpretativas desta escolha de tradução.
Assim, as conotações para o leitor estrangeiro não são as mesmas segundo Estetika slovesnogo tvorčestvaseja traduzido por Estética da criação verbal/ Estética da criatividade verbal/ da obra15 em palavras/ da obra literária; mas por que não a criatividade discursiva?
Outro problema que passa desapercebido é que a versão francesa de Esthetika slovesnogo tvorčestva (Bakhtin, 1984) não traduz o texto mais personalista e moralista: “A arte e a responsabilidade “ (1919, o primeiro texto conservado de Bakhtin), que é no entanto fundamental para compreender a noção de responsabilidade pessoal em Bakhtin. Os francofones dispõem assim não somente de um texto expurgado mas ainda uma escolha arbitrária a partir de uma antologia (Baxtin,1979). Nenhuma dessas escolhas é explicitada nesse livro. À diferença das versões espanhola e inglesa, as notas do editor russo não são traduzidas, o que não contribui para esclarecer textos obscuros fora de seu contexto16.
Não podíamos evidentemente traduzir passagens que haviam desaparecido, censuradas por S. Bočarov. Por exemplo, “Na lingüística burguesa” torna-se “Na lingüística” (tr. fr. p. 275), ou “A lingüística idealista do século XIX” torna-se “A lingüística do século XIX” (tr.fr. p. 273). A perda não é certamente enorme, mas perdemos o que, na época, fazia sentido. Mas, às vezes, seguir a censura de Bočarov suprime uma informação fundamental: os “gêneros secundários (ideológicos)” (p.161) tornam-se na tradução francesa os “gêneros secundários”” (p.267). É o próprio estatuto da noção de ideologia em Bakhtin que está modificada.
Mais graves são as manipulações da tradução que não têm mais nada a ver com um texto expurgado. Assim, o sintagma obščenarodnyj jazyk( a língua de todo o povo), que aparece 14 vezes no texto de é uma alusão transparente para os leitores da época, pois se trata de uma das palavras-chave da “intervenção de Stalin em lingüística” de junho de 1950, que nega toda divisão da língua em função das classes. Podemos admitir que Bakhtin não tinha nenhuma escolha. Era o “estilo da época”. No entanto, ele não cita uma só vez o nome de Stalin, o que mostra que sua margem de manobra não era nula.
Ora, “O problema da língua de todo o povo e do individual na língua” torna-se na tradução de 1984 “O problema daquilo que, na língua, é respectivamente de uso corrente e do indivíduo” (p.269). Da mesma forma, “A unidade da língua de todo o povo” torna-se “A unidade nacional de uma língua”” (tr.fr. p.265). A versão francesa não dá nenhuma nota, mas o comentário da versão inglesa merece ser relatado:

National unity of language” is a shorthand way of referring to the assemblage of linguistic and translinguistic practices common to a given region. It is, then, a good example of what Bakhtin means by an open unity. See also Otto Jespersen, Mankind, Nation, and Individual (Bloomington: Indiana University Press, 1964). (in Bakhtin, 1986, p.100).

Em todos esses casos, os editores ocidentais do texto praticam a mesma censura que seus colegas russos: nem Stalin nem seu adversário N. Marr jamais existiram para Bakhtin, e a questão se compreende. torna-se um texto sem data, sem contexto, sem fundo, sem alusão, sem diálogo...
Se há o politicamente correto na tradução francesa de 1984, há igualmente graves erros de compreensão do texto. Assim, o texto original, em tradução literal, diz:

Na lingüística burguesa, há sempre, em nossos dias, ficções tais como “ouvinte” e “receptor” (parceiros de “locutor”), o “fluxo verbal único”, etc. Essas ficções oferecem uma imagem totalmente deformada ...

O que se torna na tradução francesa p.274:

Em lingüística, até em nossos dias, funções tais como “ouvinte” e “receptor” (parceiros do “locutor”) têm seu direito. Tais funções oferecem...(sublinhado pelo autor).

Quando sabemos a importância da palavra “ficção” não somente em Bakhtin mas ainda em qualquer escrito polêmico da época, sua substituição pela palavra “função” é, claro, pesada em conseqüências para o leitor francês não advertido. Temos a impressão que se tratava de tornar Bakhtin legível para o público francofone dos anos 80, adaptando-o à terminologia então em voga. Assim, o artigo “Por uma metodologia das ciências humanas”17 é traduzido por “Observações sobre a epistemologia das ciências humanas”. Criam-se aí efeitos de reconhecimento para o público francofone, omitindo o fato de que as discussões de Bakhtin não incidem jamais sobre o que chamamos no francês atual “epistemologia”, mas ao contrário, sobre temas essencialmente ontológicos. (cf. 3.4.)

Saransk. M. Bakhtin ocupou, de 1945 a 1958 as duas peças da esquerda no primeiro andar desse imóvel sem água corrente, com toaletes no pátio, e uma escada em ferro (antiga prisão, tornada imóvel alojando empregados do Instituto pedagógico da Mordovia). Foi aí que ele redigiu “Problema rečevyx žanrov”, em 1952-1953.

I/ Diálogo aberto ou polêmica sem apelo?

1.1 1950: a discussão sobre o marrismo
O texto de e os materiais preparatórios, disponíveis agora no volume de 1997, foram escritos logo após o acontecimento fundamental da lingüística soviética: a “intervenção de Stalin” no domínio das ciências da linguagem (junho de 1950).18 Esta discussão, largamente redifundido na imprensa, tinha por finalidade colocar um fim na dominação do marrismo, isto é, da idéia fundamental de que a língua nacional é uma ficção, de que ela é uma super-estrutura, que não existem línguas de classe, e que o estudo tipológico da língua revela seu grau de evolução, que é dependente do estado sócio-econômico no qual se encontra a sociedade que fala uma língua dada. Outros aspectos do marrismo, como o estudo da gênese das categorias gramaticais, a história do pensamento apreendido através da formas da língua (léxico, depois essencialmente a sintaxe), foram menos consideradas por Stalin e seus inumeráveis comentadores.
A discussão de 1950 sobre o marrismo tem aspectos numerosos e de uma grande complexidade, causas patentes e impulsionadores ocultos19. Como o observa pertinentemente L. Gogotisvili nos seus comentários ao texto de da edição de 1997 (p.538), sob uma aparente unanimidade no apoio à tese da “língua de todo o povo”, a crítica da “hipertrofia” da semântica em Marr e da sintaxe nos continuadores, a recusa da divisão da língua segundo as classes sociais (sobretudo para a língua russa), o retorno aos grandes temas neo-gramáticos (gramática comparada, fonética, morfologia...), são lingüistas de correntes, de orientação e interesse muito diversos que participaram desta campanha. Eles escolheram para a crítica do marrismo, ele próprio uma corrente heterogênea, a cada vez novos aspectos particulares, dando deles interpretações às vezes diametralmente opostas.
Assim, a “hipertrofia” da semântica no marrismo20, em certos casos, era criticada como sendo a causa de uma divisão “mecânica” da língua em elementos “formais”, de um lado, e “ideológicos”, de outro, tendo como conseqüência uma de-semantização e uma compreensão unicamente “técnica” dos “meios lingüísticos”. (Vinogradov, 1951, p. 118, 149).
Mas em outros casos, esta mesma “hipertrofia” da semântica no marrismo era interpretada como um obstáculo para estudar as regularidades formais do sistema, que estão fora da competência da semântica, por exemplo, as leis fonéticas (Avanesov, 1951, p. 281-282,284).
O que é negado no primeiro caso é tomado como finalidade da pesquisa no segundo. Os contra-argumentos se neutralizam, a campanha anti-marrista se transforma em luta escondida dos diferentes campos da lingüística soviética no início dos anos 50. Em 1954, esta luta vai tomar uma forma mais aberta com a discussão sobre a estilística e o estruturalismo21.
Como todo professor da época, e sem dúvida todo Soviético médio, Bakhtin tinha um bom conhecimento desse texto, cuja leitura e o comentário foram obrigatórios sobre todos os lugares de trabalho, mesmo os mais distantes da lingüística. Os sintagmas criptados de que se serve Bakhtin em são imediatamente reconhecidos por todo intelectual soviético em 1952: “a língua de todo o povo”, “as palavras e as proposições”.

1.2 Bakhtin e “os lingüistas”

A opacidade do texto de se dissipa um pouco se procuramos de-criptar os alvos precisos de sua polêmica.

1.2.1 O mais monológico dos dois...
É difícil encontrar um texto mais anti-dialógico que . Os constantes ataques contra o que Bakhtin chama “a lingüística” e os “lingüistas” são uma escrita de ressentimento. Nenhum lingüista encontra graça a seus olhos. Ele é o único a ter razão, sem nenhuma consideração pelo ponto de vista daqueles que não partilham suas opiniões.
Bakhtin se apresenta como pioneiro: “o problema geral dos gêneros da fala nunca foi realmente posto” (p. 160), “o problema lingüístico do enunciado e seus tipos quase nunca foi levado em conta” (ibid.), as imprecisões terminológicas da “lingüística” se explicam pelo fato de que o problema do enunciado e dos gêneros da fala seja “quase inculto” (p.171) e pela “ausência de qualquer teoria elaborada do enunciado” (p.177).
No entanto o terreno já estava bem balizado na Rússia. A problemática do diálogo tinha uma longa história, em torno de Lev Jakubinskij (1892-1945) com quem havia estudado Valentin Vološinov (cf. Ivanova, 2000). Quanto à historicidade dos gêneros literários, ela tinha estado no centro do trabalho de Aleksandr Veselovskij (1838-1906), que se opunha explicitamente à classificação puramente sincrônica dos gêneros em Aristóteles. Nem um nem outro são citados por Bakhtin em . Mas a fonte principal de inspiração é, claro, o livro de Vološinov de 1929 Marxismo e Filosofia da Linguagem, totalmente silenciado no artigo de Bakhtin.
O que escrevem “os lingüistas” são só “ilusões” e “ficções científicas” (p.169). Sua estilística é “fraca” (p.164), “estreita” (p.206), suas classificações são “pobres” e “aleatórias” (p.164), suas idéias “simplificadoras” (p.167). A noção de “fluxo verbal” é “mítico” (p.184). Enfim, “a lingüística” subestima a função comunicativa da língua (p.168), ela “ignora”: a natureza do enunciado/as formas do enunciado/ a unidade real da comunicação verbal: o enunciado/ os gêneros da fala/ o papel ativo do outro.
Um dos termos favoritos de Bakhtin para desconsiderar seus adversários é “ficção”: é um discurso de verdade, acumulação de petições de princípio e de afirmações peremptórias sem o cuidado da demonstração.
O adversário é designado como “nossa lingüística” (p.167), “certos teóricos” (p. 168) ou a “grande maioria dos lingüistas” (p. 184). Raramente são nomeadamente citadas correntes particulares: a lingüística behaviorista pratica uma “vulgarização” (no sentido de trivialização) de gêneros primários (p.162). Humboldt só se interessa pela expressão do pensamento e não pela comunicação (p. 162). à diferença de Vološinov (1929), que admite o interesse da Escola de Vossler, Bakhtin pratica uma estratégia de denegação: não há “nada de comum” entre ele e os vosslerianos (p. 165). Mas se isto é tão seguro, haveria necessidade de dizer com tanta força?
não traz nenhuma informação ou análise nova em relação ao livro de Vološinov de 1929. O conhecimento que tinha Bakhtin do mundo da lingüística se limita aos grandes temas da discussão de 1950. O próprio Marr é totalmente ignorado (enquanto ele era sempre citado muito positivamente por Vološinov).
O que Bakhtin chama a “lingüística monológica” repousa essencialmente sobre duas correntes: Saussure e o estruturalismo de um lado, a Escola de Vinogradov do outro. Estas duas correntes têm em comum para Bakhtin o fato de não levar em consideração o enunciado concreto em contexto, e de se contentar com “abstrações” que são as palavras e as proposições. A relação com Stalin é mais complexa, vamos procurar mostrar.
A polêmica é uma forma muito degradada de diálogo, porque não há lugar para a voz do outro na sua plena responsabilidade: a voz do outro é prisioneira, presa na rede da voz de Bakhtin, que mexe os fios. Ela não tem nenhuma chance de se fazer ouvir, pois ela já é designada como tendo uma posição falível antes mesmo de  ter podido apresentar suas teses.
Mas há mais: não somente Bakhtin não dá a palavra ao outro para que ele possa se defender, mas além disso ele não nomeia seu adversário principal, privado do direito à palavra e à existência pelo nome. Com efeito, quando Bakhtin diz “X não é Y mas Z”, Y é na maior parte das vezes uma cripto-citação de seu adversário todo o tempo, V. Vinogradov (1894-1969).
Vinogradov faz parte, como Bakhtin, Vološinov, Jakobson e Troubetzkoy, da “geração dos anos 1890”. Muito próximo dos Formalistas nos anos 1920, ele é preso em 1934, sem dúvida por causa das ligações com o lingüista N. Durnovo. Ele é mandado para o exílio em Vjatka. Depois da guerra, foi autorizado a entrar em Moscou, foi eleito acadêmico em 1946. No fim dos anos 40, ele está na mira dos ataques marristas: em 1948, Mescaninov o acusa de se fazer eco às teorias decadentes do sausurianismo e do estruturalismo. Mas a intervenção de Stalin na lingüística o propulsiona para a glória, e ele se torna o chefe da lingüística soviética até sua morte, acumulando os títulos e as honras. Ele se especializou no estudo da “língua russa literária”. Um só texto de Vinogradov é disponível em francês (1969).

 

 

Viktor Vladimirovič Vinogradov

(1895-1969)

 

 

 

1.2.2 A relação com a língua
Para explorar em que a questão dos gêneros da fala concerne à lingüística, devemos observar em primeiro lugar que nada do que propõe Bakhtin como “superação da lingüística”, visando descobrir “a” verdadeira natureza” e a “essência” da linguagem (jazyk) é próprio a uma língua particular. Ele se ocupa da linguagem humana, aquela mesma de que Saussure negava a possibilidade de conhecimento.
Ele tenta assim para “a lingüística” um mau processo. Reprovar à lingüística saussuriana de ser uma lingüística saussuriana é sem objeto: podemos reprovar a um padeiro de não vender peixes? A problemática que ele coloca é essencialmente uma psicologia dos comportamentos humanos na linguagem, para a qual a materialidade própria das línguas e suas especificidades estruturais não importam nem um pouco.
Assim, todo gesto destinado a alguém (um sinal com a cabeça) espera uma resposta, assim como um olhar provocador ou mesmo o fato de fazer de conta de não reconhecer alguém. Tudo o que diz Bakhtin pode se aplicar indiferentemente a qualquer língua. O essencial é que ele inverte a hierarquia da tríade saussuriana, tomando por objeto tanto a linguagem como a fala, em detrimento da “língua enquanto sistema”, desconsiderada como abstração, logo como não existente na “realidade real” (real’naja dejstvitel’nost’).
A nova lingüística (dialógica) proposta por Bakhtin é em todos os pontos oponível à antiga (monológica). Aos estilos da língua respondem os gêneros da fala, à proposição (abstrata) responde o enunciado (concreto). Diante do pouco sucesso de suas propostas na URSS, ele vai propor mais tarde, nas “notas de 1961”, um novo termo: metalingvistika. Ele procura seja fundar uma sub-disciplina nova da lingüística, seja re-fundar totalmente a lingüística, que terá então por objeto estudar as relações entre as pessoas quando elas falam.
Traduzir este termo em francês por “trans-lingüística” é uma aberração. Bakhtin não propõe “atravessar” a lingüística mas ultrapassá-la, ir além. “Superlingüística” seria melhor. O modelo é a meta-física de Aristóteles: o que vem depois da física, reinterpretado pela escolástica medieval como aquilo que está além da física. Eu proponho traduzir por “meta-lingüística”, com um hífen.22 Mas a meta-lingüística de Bakhtin é para a lingüística o que a metafísica é para a física: um discurso não falsificável, que só se pode glosar ao infinito.

II/ Uma filosofia personalista

2.1 O sujeito não está morto
Se, em Vološinov, o sujeito se dissolve no coletivo (que ele chama de “social”), em Bakhtin ao contrário o sujeito é um indivíduo responsável interagindo em permanência com os outros indivíduos que são igualmente sujeitos. A sociabilidade aqui não se diferencia do inter-individual.
Ao inverso do “universo ocidental” da morte do sujeito ou do sujeito dividido, para Bakhtin o sujeito não morreu. Todas as tentativas para fazer uma leitura psicanalítica, ou simplesmente aí ver um sujeito dividido são votadas ao fracasso.
As cadeias de equivalência que constrói o próprio Bakhtin, por glosas internas (“X, isto é Y”) são aqui muito loquazes: locutor (govorjaščij) = sujeito da fala (rečevoj sub"ekt) = autor (avtor): voltamos sempre ao mundo da literatura, que é colocada a maior parte do tempo no mesmo plano que os enunciados da “vida”. Quanto ao enunciador (vyskazyvajuščij, p. 168, tr.fr. p.273), ele não é nada mais do que um indivíduo que fala.
O projeto de antropologia filosófica de Bakhtin é explicitamente e antes de tudo uma abordagem personalista cristã da responsabilidade e da tomada em conta dos outros enquanto sujeitos. Mas não é tampouco uma antropologia lingüística como em Benveniste. Se este último tem por objeto de pesquisa o homem na língua, Bakhtin ao contrário toma como tema de investigação o homem e a linguagem.
A meta-lingüística de Bakhtin não é uma pragmática: não há nenhum lugar para os indicadores da dêixis, da sui-reflexividade, da performatividade, o jogo dos pronomes pessoais, as formas lingüísticas do pressuposto, nunca há “operação”. Bakhtin não reconhece senão o perlocucional (aquilo que se diz para fazer: damos uma ordem para  sermos obedecidos), e não ilocucional (aquilo que se faz dizendo: prometer, perdoar). Nesse sentido, ela não pode vir a falsificar a lingüística das línguas, porque seu objeto é bem outro.
Mas não é tampouco uma interrogação sobre o lugar do sujeito na língua como em Benveniste, porque o sujeito em Bakhtin não é nada mais que um locutor, isto é, alguém que, além de ser um indivíduo, fala, e não um sujeito da enunciação “constituído na e pela linguagem” (Benveniste, 1966, p. 259)). É uma psicologia do comportamento inter-individual ( e não uma sócio-psicologia como em Vološinov).
Uma simples enumeração dos personagens que povoam o texto de mostra rapidamente a enorme diferença que separa Bakhtin e Benveniste, esses contemporâneos que escreveram em absoluta ignorância recíproca. Em Bakhtin, o mundo é feito de indivíduos que entram em interação pela fala, mas que preexistem enquanto indivíduos à sua tomada de fala. Longe de ser “instâncias de enunciação” (Benveniste), seus dizeres são “análogos a réplicas de teatro” (p.197). Encontramos assim no texto de “as pessoas que nos cercam” (p.181), “numerosas pessoas” (p.183), “interlocutores” que são os parceiros do diálogo” (p.173), um “outro interlocutor” (p.176), “participantes em tal ou tal domínio da atividade humana” (p.159) ou ao “diálogo da vida cotidiana” (p. 160). Vemos circular “outros participantes da comunicação verbal: ouvintes, locutores, parceiros...” (p.164). “A palavra outra” é a das “outras pessoas” (p.192).
Bakhtin, à diferença de Benveniste, não faz nenhuma diferença entre um indivíduo e um sujeito. Para Bakhtin, o “sujeito da fala” (rečevojsub”ekt) é um indivíduo concreto, feito de carne e osso, e não um sujeito da enunciação. É alguém que fala, logo um locutor, dotado de “intenção de comunicação” (rečevoj volja), caracterizado por “individualidade e subjetividade” (ib.). Ele pode ser o “autor de uma obra” (p.177).
O que importa, em todos esses casos, é que esses personagens são pessoas e não posições discursivas ou de sujeitos da enunciação. Bakhtin insiste constantemente no fato de que esses personagens são “participantes reais da comunicação verbal” (p. 170), “pessoas que participam da comunicação verbal”, (p.180), “participantes diretos da comunicação” (ib.).
Fica por resolver um problema mais delicado: entre os participantes da comunicação verbal (ouvintes, locutores, parceiros) aparece uma vez “cuzaja rec´”, traduzido em 1984 pelo “discurso do outro” (p. 269). Esta tradução francesa produz o que se chamava antigamente “efeitos de reconhecimento”: ela faz sentido para os leitores francofones, que aí reconhecem “o universo do discurso”. Ora, aí ainda forçamos o texto bakhtiniano  no sentido foucaultiano de um discurso como um conjunto de enunciados cuja fonte foi perdida, que funcionam de modo impessoal e não dominado. Traduzir “fala dos outros” permite evitar este perigo. Estamos na utilização da linguagem em situação por indivíduos concretos de consciência plena, e não em uma formação sem autor como em Pêcheux ou Foucault: a “circulação de enunciados”, o que Jean-Jacques Courtine chamava “uma voz sem nome” (Courtine, 1981), lembrando igualmente uma fórmula muito corrente utilizada na França nos anos 1970: “Isso fala, sozinho, em algum lugar...” (Courtine, 1991, p. 193).
A oposição de Bakhtin ao conjunto da “lingüística” lembra estranhamente a teoria das duas ciências de seu contemporâneo Zdanov. Se este último, no fim dos anos 1940, opõe “ciência burguesa” e “ciência proletária” como a abstração ao concreto determinado socialmente23, Bakhtin opõe uma ciência (monológica, abstrata) do objeto a uma ciência (dialógica, concreta) do sujeito. Esta oposição, que percorre toda sua obra, é claramente afirmada em um texto de 1961:

Uma coisa é ter uma atitude ative face a uma coisa morta, sem voz, que se pode moldar e dar forma como se quer, outra coisa é ter uma atitude ativa face à outra consciência, viva e soberana (Bakhtin, 1961[1986,p.328].

A memória aqui se prende a um texto fundador, que era bem conhecido dos participantes do círculo informal de Bakhtin nos anos 20: Ich und Du (1923), do filósofo judeu austríaco Martin Buber. A tese central da obra é que o homem se define por ser um homo dialogus, que a relação do eu ao outro é uma relação a um outro sujeito (Du) e não a um objeto (es), e que o eu da primeira relação (dialógica) não é idêntico ao eu da segunda (que é monológica). O homem não pode ser senão sujeito, e não objeto, ele não pode ser então conhecido senão pelo diálogo das consciências, e não como objeto de laboratório.
Bakhtin adere à orientação axiológica de M. Buber: o sujeito é para o objeto o que o vivo é para o morto. Daí decorrem duas conseqüências:
- Toda afirmação sobre um homem proferida por um outro homem é em princípio insuficiente e defeituosa.
- A introspecção é um modo de conhecimento possível e lícito.
O mundo de Bakhtin é assim totalmente anti-freudiano: para Freud a verdade do homem não é acessível a ele mesmo, porque ele não pode ser vítima de uma auto-ilusão. Só um olhar exterior, aplicando regras estritas, pode lhe revelar o que há nele. Ora, em Bakhtin, aqui totalmente em acordo com o Vološinov de Frejdizm (1927), não há inconsciente, logo divisão do sujeito; não há nada de ilusório: a consciência é plena, mas ela se nutre do contato dos outros, para os quais ela tem respeito e atenção. Nesta bela visão moral das relações ideais entre os seres humanos, nos encontramos nas antípodas do sujeito morto de Althusser ou Foucault ou do sujeito dividido de Lacan. Mas estamos também longe da teoria da enunciação, e mesmo da pragmática. À diferença da posição sociologista de Vološinov, Bakhtin é um pensador personalista, com a especificidade de que suas categorias psicológicas (as “atitudes subjetivas”, “o aspecto subjetivo do enunciado” (p. 180)) são um pouco simplistas: o outro locutor tem “opiniões e convicções, preconceitos (de nosso ponto de vista), simpatias e antipatias” (p.201).
Se em Benveniste o sujeito é um ponto de chegada, que se “constitui” pelo fato de proferir um pronome pessoal de primeira pessoa do singular (“É ego quem diz ego” (1956 [1966,p.260]), em Bakhtin ao contrário é um ponto de partida: cada indivíduo é sempre um sujeito, quer ele fale ou não, se ele interrogar ou se responder.
Compreendemos então que toda lingüística das formas próprias de uma língua particular seja considerada como “monológica” por Bakhtin: este termo-chave de M. Buber deve se decifrar como “não tomando em conta a subjetividade irredutível do outro”.
É porque a distinção fundamental que faz Benveniste entre enunciado e enunciação está totalmente ausente de Bakhtin que se vê colocar-se uma posição teórica radicalmente diferente. Em Bakhtin, o locutor é um indivíduo que, entre outras atividades (semióticas ou não), fala. Mas o fato de falar não é  a condição do fato de que seja sujeito. Como o nota G. Dessons a propósito da interpretação psicologizante que os pragmatistas têm às vezes dado ao texto de Benveniste:

O indivíduo fala porque ele é dotado da faculdade linguageira, mas do mesmo modo que ele corre porque é dotado da faculdade de andar. (Dessons, 2006, p. 133).

Do mesmo modo, a noção de “não-pessoa” é impensável em Bakhtin: ela seria submetida a um julgamento depreciativo, como sendo a marca de uma atitude “monológica”.

2.2 Da comunicação
Em nunca uma conversa é surpresa ou interceptada, nunca há malentendido, lapso, falha, “diálogo de surdos”. Não há nem mesmo não-dito como em Vološinov.
Bakhtin pretende colar ao real, ao autêntico, ao concreto, enquanto ele não faz nenhuma descrição de um diálogo real (jamais a idéia de trabalhar sobre um registro de conversa parece ter-lhe vindo). Ele se volta imediatamente para a literatura, que parece para ele ter perfeitamente o lugar de “realidade”, mas ainda aí, ele não dá nenhum exemplo concreto de análise de diálogo literário, diferentemente de Vološinov em Marxismo e Filosofia da Linguagem.
Seu princípio de alternância dos turnos da fala é particularmente idealizado e otimista: nele, ninguém interrompe ninguém, esperamos polidamente que um locutor tenha terminado de falar para tomar a palavra por sua vez. Os interlocutores “passam a palavra” após cada réplica (p.173): este universo de polidez é espantosamente pouco historicizado e pouco “concreto”, à imagem de uma sociedade bem comportada, fora de qualquer contradição ou tensão, sem conflito nem divisão (mesmo se há hierarquia social dos “inferiores” e “superiores”): só há indivíduos que interagem trocando pensamentos.
Feliz mundo este de Bakhtin, mundo irênico em que as “pessoas” (ljudi) comunicam partilhando as mesmas regras de utilização estilística dos gêneros da fala. Na relação com o outro não há nem projeção de imagem, nem fantasma, nem ideologia no sentido de falsa consciência. O sujeito pleno, consciente é um ideal de responsabilidade.
A antropologia realista de Bakhtin é povoada de numerosos personagens que agem e são perfeitamente concretos, feitos de carne e osso, e que passam muito de seu tempo a agir falando com seus irmãos humanos: eles dão ordens, eles colocam questões, em suma, eles interagem pela palavra. Esses personagens são “parceiros”, “participantes pessoais” (p. 180). Há assim locutores, ouvintes, leitores, o público, a comunidade de especialistas, contemporâneos, pessoas que partilham a mesma opinião (edinomyšlenniki), parceiros, adversários, inimigos, amigos, subordinados e chefes (načal’niki), inferiores e superiores, próximos e estranhos (čužye). Há também papéis e status sociais: pessoas que têm autoridade (p.193), escritores, cientistas, pais, mestres e mães, professores, “etc”.24
Assim, para Bakhtin, o paraíso são os outros: a fala dos outros (čužoe slovo), em interação constante com a minha, é constitutiva de minha pessoa.

III/Reunir o disperso e contemplar o real

3.1 O objeto privilegiado: o enunciado
Depois dos gêneros e em conexão constante com eles, o objeto específico de Bakhtin é vyskazyvanie, traduzido por “enunciação” por alguns25 e por “enunciado” pela maior parte dos tradutores26. Não há nenhuma possibilidade lexical no russo de distinguir enunciado de enunciação, esses dois termos de base da lingüística francofone depois de Benveniste. A palavra vyskazyvanie, como Äußerung em alemão, pode designar tanto o produto como o processo. O tradutor russo dos Problemas de Lingüística Geral de Benveniste propôs “akt proizvodstva vyskazyvanija” (“ato de produção do enunciado”) para enunciação.
Tudo mostra que o que Bakhtin construiu não é em nenhum caso uma teoria da enunciação, mas uma teoria do enunciado, em oposição frontal à noção de “proposição” dos lingüistas. À diferença de Foucault, o enunciado bakhtiniano é “profundamente individual”, “concreto”, “único”, “irreiterável”. Mas ao mesmo tempo os enunciados de um lado são “ligados” entre eles, de outro lado, eles podem ser reagrupados em tipos. Do enunciado decorrem os gêneros: não é porque há enunciados que há gêneros da fala. Um é a condição do outro.
Às vezes o enunciado tem limites rígidos, do domínio da evidência imediata (a alternância dos turnos de fala27, em que cada enunciado é terminado por um “dixi” implícito, sobre o modelo das réplicas do teatro) às vezes ele é totalmente interpenetrado pela “voz” dos outros. Um enunciado tem um conteúdo, um estilo, uma construção composicional (p.159), mas à diferença da fala saussuriana, ele é determinado por uma “esfera de comunicação” ou uma “esfera de atividade”. Pode ser oral ou escrito (ib.), mas Bakhtin não diz nada sobre uma eventual distinção entre o funcionamento da escrita e do oral: o enunciado escrito é reutilizável em permanência, e não o enunciado oral (mas que fazer do enunciado oral gravado?).
O enunciado em Bakhtin toma o lugar da língua em Stalin e da proposição em Vinogradov. Mas em todos os casos não saímos da problemática do reflexo:

O enunciado reflete diretamente a realidade extra-verbal (, p. 186, tr.fr. p. 289)
Os gêneros da fala refletem diretamente as mudanças da vida social (, p. 165, tr.fr. p. 271)
A língua reflete diretamente as mudanças na produção (Stalin, 1950, p.22)
A proposição reflete diretamente a realidade objetiva (Vinogradov, 1952, quase a cada página).

Vemos que está bem aquém de Marxismo e Filosofia da Linguagem: nada de teoria do signo, nada de noção de ideologia, nada de entimema, nada de meio social. Uma só idéia, martelada em permanência: o enunciado é a única realidade, não individual como em Saussure (polêmica explicita), nem social como em Vološinov (polêmica implícita?), mas inter-individual.

3.2 O separado e o reunido
Como tantos intelectuais russos de sua época28 Bakhtin é fascinado pela idéia de laço e de totalidade, e repele a de isolamento e de separação. Sua crítica da noção de proposição nos “lingüistas” toma seu sentido do fato de que a proposição é “isolada” do contexto, à diferença do enunciado. Assim lemos que o enunciado individual é um “todo” (celoe, celostnoe), e que ele é “completo” (zaveršennoe). Muitos outros objetos bakhtinianos são marcados com o selo da totalidade: os gêneros da fala, a comunicação verbal, a intenção da fala (rečevoj zamysel), a compreensão real, o ato real de compreensão responsiva ativa. Quanto à rečevoj celoe, traduzida em inglês por speech whole, em espanhol por totalidad discursiva e em francês às vezes por tout verbal, às vezes por tout discursif, poderíamos arriscar em propor o todo da fala proferida, para sublinhar ao mesmo tempo o caráter efetivamente realizado (“concreto e único”) e integrado em uma globalidade acabada, cujas fronteiras são tão claras (marcadas pela alternância dos turnos de fala) quanto fluidas (pois o todo contextual não tem limites).
Se há todo, é porque há laço. Como em toda epistême romântica, o laço é “orgânico”, tanto quanto o todo é “orgânico”. Bakhtin reivindica um estatuto particular para as ciências humanas, mas sua grande metáfora do organismo provém das ciências da vida.
No texto de , o laço entre X e Y pode ser “direto”, “indissolúvel”, “inelutável”, “necessário” ou “estreito”. Se tomarmos como predicado-pivô “estar ligado a” obtemos o seguinte quadro:

A situação torna-se complexa pelo fato de que “estar ligado” tem às vezes o sentido de “é causado por”, às vezes “está em co-variação com”.

3.3 Esferas, tipos, estilos, gêneros                                                    
Bakhtin está esticado entre o Um e o Múltiplo. Cada enunciado é único, concreto, irreiterável, no entanto podemos reunir os enunciados em tipos: são os gêneros. Os gêneros dependem das esferas de atividade que são ao mesmo tempo domínios de atividade. A cada gênero “está ligado” um estilo, que não deriva da língua como sistema.

Da reunião dos enunciados individuais em tipos segue-se um problema dos mais clássicos: como conhecemos este objeto ideal que é o “tipo”? como ele é posto em evidência? E de que um tipo é típico? Bakhtin não trabalha nem por indução nem por dedução, mas pela simples evidência de um conjunto construído em extensão, e não em compreensão. Ele dá uma definição do gênero pelo tipo: cada enunciado torna-se o representante típico de seu tipo, a parte do todo, isto é uma metonímia. Coroada pela fórmula paradoxal: todo enunciado é único, mas nenhum isolado.
Quanto à lista de gêneros da fala, ela tem mais a ver com “a casa da maria-joana” (l´auberge espagnole) do que com um catálogo raciocinado e reconstituível: nenhum procedimento de validação é proposto. Só podemos tomar conhecimento da enumeração que dá Bakhtin. As palavras-chave aqui são “há” e “etc”. Sabemos que “há” o gênero da carta pessoal, da arenga, da manifestação, da ordem, da prece, e que esta lista não tem fim.
A enumeração dos diferentes tipos de circunstâncias nas quais é empregada a linguagem era um lugar comum muito corrente na época da URSS:

A linguagem (reč’) penetra todos os momentos da vida do povo. Ela se manifesta (projavlaetsja) nas primeiras palavras, ainda inarticuladas da criança, como nas narrativas plenas de um rico conteúdo de vida das pessoas que viveram bastante, na conversa de todos os dias sobre temas da vida corrente, nas exortações inflamadas de uma tribuna popular e nos versos de um canto inspirado (Kacnel'son, 1949).

Bakhtin poderia ter sido nominalista (“só há enunciados individuais”), mas de fato ele é profundamente essencialista: ele constrói tipos fundados sobre “a verdadeira natureza” e “a essência”. Mas não vemos bem em que os tipos não seriam por sua vez abstrações.
Nisto, ele se distancia da linha de pensamento de Crocce (para quem a noção de gênero é só uma “abstração”: 1904) e de Vossler (para quem a língua só existe em enunciados particulares), mesmo se é claro que esta é uma profunda fonte de sua inspiração.

3.4 Ontologia vs Epistemologia
Bakhtin busca a “verdadeira natureza”, a “verdadeira essência” das coisas. Ele se situa em uma problemática ontológica: só “o que existe realmente” tem valor para ele.

A natureza do enunciado deve ser esclarecida e determinada pela análise dos gêneros primários e secundários (, p. 161).

Certamente, para ele é às vezes difícil “definir a natureza geral do enunciado, por causa da extrema heterogeneidade dos gêneros da fala”, mas é claro que é um objetivo lícito.” (Ib.).
Este tipo de interrogação existencial é partilhada por todos os adversários, marristas e não-marristas, e aparece freqüentemente quando das “discussões” dos anos 1950, utilizando argumentos de natureza ontológica: X existe / não existe.

assim, segundo N. Marr, não há línguas de todo o povo, línguas da nação inteira, somente as línguas de classes e de camadas sociais teriam uma existência real (Suxotin, 1951, p.14).

Esta escrita é de um grande dogmatismo: X não é Y mas Z, todo Y é Z, cada X é sempre Z. Temos aí uma seqüência de afirmações sem nenhuma tentativa de prova, que não tem o que fazer de qualquer método hipotético-dedutivo: Bakhtin não faz hipótese. Ele afirma suas teses e refuta as dos outros em permanência. O que ele diz dos enunciados e dos gêneros é a definição justa ( e não uma proposição de definição). Ele não diz “eu chamo x tal fenômeno”, mas “a verdadeira natureza de X é...”.
Estamos aqui bem no interior de uma querela que lembra a dos nominalistas e dos realistas na Idade Média. Para Bakhtin, se há unidade da língua, só pode ser no nível abstrato ou nível minimal da comunicação em língua. Ele  reprova à lingüística sua recusa deliberada de fazer uma descrição total de um enunciado-acontecimeto (vyskazyvanie kak sobytie). O ideal cognitivo de Bakhtin parece ser ao contrário a descrição integral, a que redobra o real a conhecer, aporia do mapa com escala 1:1 de que Borges mostra a inutilidade na sua novela “Do rigor da ciência” (1999, p. 57).
Compreendemos então porque o “circuito da fala” do CLG é o alvo de constantes críticas da parte de Bakhtin: ele o interpreta de modo realista, como se Saussure afirmasse que o que se passa realmente entre dois interlocutores.

Esse esquema se torna em Bakhtin:
- uma “ficção da lingüística burguesa” (, p. 168, não traduzida na versão francesa)
- “um esquema de processos ativos da fala no locutor, e dos processos passivos de percepção e compreensão da fala no ouvinte” (, p.169, trad. fr. p.274)
- “...o ouvinte dotado de uma compreensão passiva, tal como ele é representado na qualidade de parceiro do locutor nas figuras esquemáticas da lingüística geral, não corresponde ao protagonista real da troca verbal” (, p.170, trad.fr. p. 275)
Mas Saussure disse que era “realmente” o que se passa em um diálogo? Não é para entender que o que fazem “realmente” as pessoas quando elas conversam não entra no campo do objeto língua tal como o constrói Saussure, como seleção do que pertence ao interior de uma teoria?
Bakhtin pode ter se afastado muito de Humboldt, mas certas passagens deste último parecem ter sido escritas por Bakhtin. Assim acontece com a célebre definição da língua como atividade em vias de se fazer [Energeia] e não como obra feita [Ergon]:

Com todo rigor, esta definição só concerne ao ato singular da fala atualmente proferida; mas, no sentido forte do termo, a língua não é, tudo bem considerado, senão a projeção totalizante desta fala em ato. Porque, no caos parcelar de termos e de regras que nós batizamos correntemente com o nome de língua, nós não tratamos senão do elemento proferido pelo ato falante e que não é realizado senão de forma incompleta, pois há necessidade de um novo trabalho para aí reconhecer a especificidade da fala viva e para dar uma imagem verdadeira da vida da língua. Desmembrando assim os elementos, nós nos impedimos precisamente de reconhecer os valores mais significativos, que não podem ser percebidos ou pressentidos (o que provaria, se houvesse necessidade, que a língua propriamente dita reside no ato que a profere, que a efetua) em outro lugar que não o encadeamento do discurso. Tais são os princípios que devem presidir à pesquisa, se queremos apreender a essência viva da língua. O recorte abstrato em palavras e regras é um artifício sem vida, caricatura da análise científica.” (Humboldt, 1974, p. 183-184, trad. Pierre Caussat). Isto tudo é uma citação?

Encontramos nesse texto a maioria dos temas que Bakhtin desenvolve em 1952, e em particular a desconfiança em relação à abstração.
apresenta um sistema de valores em que o concreto é valorizado em detrimento do abstrato, sistema de valor partilhado pelos herdeiros de Croce e Vossler. Assim, os neo-lingüistas italianos, contemporâneos de Bakhtin, chegam às mesmas conclusões em plena ignorância de seu trabalho ou mesmo de sua existência, mas eles se nutriram das mesmas fontes humboldtianas e românticas:

Só o locutor individual, concreto, existe realmente no ato individual e concreto da sua fala. Ele não pode representar a norma abstrata sonhada pelos neo-gramáticos. A língua inglesa, a língua italiana, são puras abstrações. Não há “italofone típico” da mesma forma que não há homem médio (Bonfante, 1947, p. 347)

Conclusão

Resta uma questão: o que podemos fazer de tudo isso?
O que ganhamos com os gêneros da fala, que já não sabíamos? Que novos objetos descobrimos? De que nova positividade dispomos depois do artigo de Bakhtin? O que sabemos fazer de diferente, que já não sabíamos? Os conhecimentos transmitidos são controláveis e reprodutíveis? Teria sido necessário que Bakhtin dispensasse tanta energia para chegar ao fato de que a expressividade não é do domínio da proposição mas do enunciado?
Falemos francamente: o balanço é magro. Sabemos que se colocamos uma questão, é para obter uma resposta, que se damos uma ordem, é para sermos obedecidos, que falamos raramente para não dizer nada, e que nunca julgamos do ponto de vista de Sirius. Mas é uma descoberta que tumultua?
Quanto aos gêneros da fala, poderiam ser alargados a todo tipo de atividade semiótica, aos gestos e às mímicas que permitem igualmente, nos “domínios de atividade” particulares, fazer pedidos, repreensões, ameaças.
Descobrimos um universo irênico, sem história, nem lugar determinados, onde “as pessoas” “comunicam”, tomam a palavra a turnos de fala, levando em conta a reação atenta do interlocutor, que não é um receptor passivo. Esse mundo de comunicantes faz sonhar, mas não o vemos se realizar “na vida”. Quanto a utilizar a descrição desse mundo ideal em qualquer estudo que seja que toque o domínio da linguagem enquanto tal (e não como simples componente da interação enquanto comportamento), não vemos muito bem o que é possível fazer com isso. Sem dúvida, a vida autêntica da pessoa não é cognoscível senão pelo intersubjetivo: Bakhtin nos lega preceitos éticos, mas nenhuma metodologia positiva aplicável ao que quer que seja.
Com afirmações sem apelo (“todo enunciado é necessariamente endereçado a alguém, sempre leva em conta a resposta potencial do outro”), Bakhtin confunde sistematicamente o ser e o dever-ser. Ele nos carrega com ele em um turbilhão de interrogações de tipo ontológico e deôntico, mas que não são nem falsificáveis, nem reprodutíveis. O sujeito individual está no centro do edifício, mas é uma noção não definida, ponto de partida irredutível de uma moral das relações humanas.
No entanto, a posição de bom senso de Bakhtin: ler em contexto, nos permitiu levantar certas questões inesperadas em relação à recepção da ciência soviética na França dos anos 1970-80. Nisto, ao menos, a leitura de Bakhtin foi útil.

Tradução: Eni Puccinelli Orlandi

 

Notas


1  Cf. Jean-Claude Milner: “O exotismo no entanto não é menor quando Jakobson fala em Paris: ao escutá-lo, nós recebemos, nós franceses, a impressão de acessar um continente de mistério e de maravilha: a Rússia, ainda impregnada de Bizâncio,  montão inesgotável de línguas, de gestos e de crenças.”(Milner, 1978,p. 53).

2  No V Congresso internacional de estudos bakhtinianos, Manchester, julho, 1991. A este respeito ver Steinglass, 1998.

3  “Obra rica e original, à qual nada pode ser comparado na produção soviética em matéria de ciências humanas” (Todorov, 1984, p.7).

4  Por “Círculo de Bakhtin” entendemos um grupo de intelectuais que, nos anos 1920-30, tinham o hábito de se encontrar e de trabalhar juntos. Trata-se, além de M. M. Bakhtin, de Matvej Isaevič Kagan (1889-1937); Lev Vasil'evič Pumpjanskij(1891-1940); Ivan Ivanovič Sollertinskij (1902-1944); Valentin Nikolaevič Vološinov (1895-1936); Pavel Nikolaevič Medvedev (1891-1938). Esses dois últimos devem ser conhecidos como autores inteiros e não como clones de Bakhtin.

5  Cf. Frejdenberg, 1936 (reed. 1997). Sobre sua obra, em outras línguas que não o russo, cf. Moss, 1984; Perlina, 2002; Kabanov, 2002.

6 Kanaev, 1926. Jamais a menor prova material foi trazida para a paternidade de Bakhtin sobre textos “controversos”: nem manuscritos, nem reconhecimento oficial e confirmado por escrito pelo próprio Bakhtin. Ele, no momento de sua morte, recusou obstinadamente assinar uma declaração de paternidade, apesar dos pedidos urgentes de seus executores testamentários. Esses últimos receberam entretanto a totalidade dos direitos de autor sobre as reimpressões posteriores e as traduções das obras de P. Medvedev e V. Vološinov. O único documento escrito dado por V. Ivanov, cujo artigo de 1973 tinha apresentado como uma evidência que Vološinov e Medvedev eram apenas nomes postiços, é uma carta de Kanaev que diz que “foi Bakhtin que escreveu o artigo sobre o vitalismo contemporâneo” de 1926. Mesmo se confissão não é prova, o argumento é de peso, mas ele não explica em nada como um texto que descreve um protocolo experimental de dissecação, que necessita não apenas de instrumentos de laboratório mas também uma infra-estrutura técnica sob a direção de especialistas, pôde ser redigida por este filósofo moralista dos anos 20, cuja biografia, mesmo nebulosa, nunca mencionou o menor contato com laboratórios de biologia. Sobre o problema da paternidade dos “textos controversos”, cf. o artigo introdutório à nova tradução completa e comentada de V. Vološinov: Marxisme et Philosophie du Langage atualmente preparada por uma equipe do CRECLECO na Universidade de Lausanne, no prelo. Se há um mistério, é a leviandade com a qual numerosos intelectuais “ocidentais” tomaram por verdadeiras afirmações muito pouco sustentadas. Cf. Todorov, 1984, p.8: “várias fontes autorizadas (soviéticas) revelam que Bakhtin é o autor...”, sem explicar o que é uma “fonte autorizada”, nem a relação entre revelar e provar.

7 A edição espanhola de Estetika slovesnogo tvorčestva apresenta ao contrário Bakhtin como um “anti-formalista declarado” (1998, 4ª. Capa).

8  J. Kristeva lembra a propósito de Bakhtin a célebre – mas única – alusão de Marx à linguagem: “A linguagem é a consciência real, prática, existente também para o outro, existente pois igualmente para mim – mesmo pela primeira vez” (“A Ideologia alemã”, em K. Marx – F. Engels: Etudes Philosophiques, Paris: Editions sociales,1961, p. 79).

9  Cf. Por exemplo, o imponente trabalho acumulado no Bakhtin Center da Universidade de Sheffield: http://www.shef.ac.uk/uni/academic/A-C/bakh/bakhtin.html

10 Na época soviética, em economia planejada, todo programa de pesquisa, por exemplo em uma equipe pedagógica, só podia ser considerada coletiva. O programa dos pesquisadores individuais devia se inscrever em um plano anual estabelecido anteriormente e aprovado pela direção do Instituto. Em 18 de novembro de 1953, o relatório de atividades do Instituto anota que Bakhtin redigiu seu artigo, “conforme ao plano” (Baxtinskij xronograf, 2006, p. 179).

11 VAK: Vysšaja attestacionnaja komissija:Comissão superior de autorização das teses.

12  As duas traduções em francês do texto de Stalin (Calvet, 1977, p. 166 e Gadet et al. 1979, p.210) dão “troca de idéias” para obmen mysljami, modernização podendo ser interpretada como “troca de opiniões”, o que mascara o caráter bastante humboldtiano dessa passagem, em que os membros de uma coletividade lingüística trocam seus pensamentos, que têm em comum ser expressos na mesma língua. Stalin partilha com Humboldt e o conjunto do romantismo alemão a asssimilação da sociedade com a nação, ela própria definida como uma coletividade em que a língua comum desempenha um papel primordial. Notemos que o sintagma obmen vyskazyvanijami (“troca de enunciados”) é freqüentemente empregada por Vološinov, por exemplo em seu artigo “A construção do enunciado” (1930) (traduzido por Todorov, 1981, como “A estrutura do enunciado”).

13 Nessas notas preparatórias, Bakhtin fala da “fórmula dialógica de Marx e Engels” (trata-se da célebre passagem da Ideologia Alemã de Marx já asssinalada: “A linguagem é tão velha quanto a consciência, – a linguagem é a consciência real, prática, existindo também para os outros homens, existindo pois então somente para mim-mesmo também”. A Ideologia alemã (Baxtin,1997,p.213). Esta citação aparece três vezes no texto de Stalin (1950). Nas suas “Notas de 1961”, Bakhtin escreve: “K. Marx dizia que somente um pensamento expresso na fala (v slove) torna-se realmente um pensamento para o outro e somente por aí igualmente para mim-mesmo” (ib., p. 338) (sublinhado pelo autor, Bakhtin).

14 Para complicar ainda a situação, notemos que na página 183 Bakhtin utiliza a palavra vyskazyvanie para traduzir a fala [parole] saussuriana.

15 A palavra russa tvorčestvo, como Schöpfung em alemão, tem tanto o sentido de ação (o fato de criar) como o de resultado (a obra realizada).

16 Do mesmo modo, certas notas de Bakhtin não são traduzidas em francês, sem que esta decisão seja justificada pela tradutora.

17 Texto escrito no fim dos anos 30, remanejado por Bakhtin em 1974, publicado por S. Bočarov em 1979.

18 Esse conjunto de artigos foi beneficiado fortemente pelas conversas com o lingüista georgiano Arnold Cikobava, mas foi, no essencial, redigido pelo próprio Stalin, cf. Cikobava, 1985.

19 Sobre a discussão lingüística de 1950 e a intervenção de J. Stalin no campo da lingüística, cf., em línguas “ocidentais|”, Murra et al; Calvet, 1977; Gadet et al.; l´Hermite, 1987.

20 Sobre o lugar original que ocupa a semântica na lingüística, cf. Velmezova, 2007.

21 Cf. Dolinin, 2003.

22 As notas bibliográficas de Bakhtin desta época mencionam B. Whorf: Collected papers on Metalinguistics, Washington, 1952. Nada prova que ele tenha lido este livro, nem mesmo que ele tenha podido tê-lo entre as mãos, mas o título pode tê-lo inspirado.

23 Para um exemplo de recepção não crítica da teoria das duas ciências na França, cf. o texto de J.-T. Desanti et al., 1948.

24 Esta lista é retomada quase tal qual na sociolingüística soviética dos anos 70, 1982, a propósito de Krysin.

25 Marina Yaguello na versão francesa de Marxisme et Philosophie du langage e Augusto Ponzio (“enunciazione”) para a versão italiana. A versão brasileira (“enunciação”) foi feita a partir da tradução francesa.

26 Ladislas Matejka na versão inglesa de Marxismo e Filosofia da Linguagem (“utterance”), Tatjana Bubnova na versão espanhola (“enunciado”).

27 A noção de “alternância dos sujeitos de fala” é massivamente representada: 35 vezes, ultrapassando “réplica” (30 vezes).

28 Este tema é onipresente em Jakobson e Troubetzkoy. A este respeito, cf. Sériot, 1999.

 

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